A partir de quando é que acreditámos ser o «povo de brandos costumes» em que de facto nos tornámos? E porquê? Se olharmos para a nossa história, verificamos que somos tudo menos brandos. Não é preciso ir muito longe, um passeio pela Primeira República oferece um retrato fiel do nosso capital de violência que nenhuma transição política justifica. Ou mais recuadamente. Em Omã, cinco séculos depois da nossa passagem pela sua costa e cidades portuárias, ainda assustam as crianças com «se te portas mal, chamo o português…». Não me parece que isto fale da nossa brandura. E custa-me a crer que os anos longos de salazarismo sejam os responsáveis pela nossa incapacidade de reivindicação de hoje, quase cinquenta anos depois do 25 de Abril.

Convém que revejamos a nossa mansidão e interpelemos aqueles que tão deficientemente nos governam, afinal, foram eleitos. Dependem dos nossos votos para a manutenção do poder. E cabe-nos a responsabilidade de escrutinar as decisões que tomam em nosso nome enquanto nos representam.

Vem isto a propósito de duas decisões independentes, todavia relacionadas. Mas em meu nome, nenhuma das duas.

A primeira. António Costa, excelente anunciador, anunciou o fim dos Vistos Gold quando informou que «o programa Vistos Gold já cumpriu a função que tinha de cumprir». António Costa, péssimo concretizador, mantém os Vistos Gold com a maioria PS. A quem servem estes vistos? Para quê? Não é, de certeza, para a renovação do património imobiliário em benefício dos portugueses.

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A segunda. A decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia [TJUE], de 22 de Novembro último, de invalidar o acesso público ao registo de informação sobre os beneficiários finais das empresas ou fundos: o registo UBO [ultimate beneficial owner]. Portanto, não se saberá a quem pertence uma empresa ou fundo.

O acesso público a estes registos, por qualquer pessoa ou organização que demonstrasse um legítimo interesse na informação neles contida, foi crucial no combate ao uso perverso do sistema financeiro, fosse na lavagem de dinheiro ou no financiamento do terrorismo. Doravante isso não será possível já que «constitui uma séria interferência nos direitos fundamentais, principalmente aqueles ao abrigo dos Artigos 7º e 8º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, respectivamente, o direito à privacidade e à vida familiar, e à protecção de dados».

Este registo, de facto, permitia saber o nome, a nacionalidade, a data de nascimento, o país de residência oficial, a natureza e dimensão da propriedade do beneficiário. E os casos levados ao TJUE demostraram o potencial de abuso dos dados pessoais. Porém, o objectivo do acesso público a estes registos era a transparência financeira, não o striptease financeiro. A facilitação da investigação dos crimes financeiros. As offshores, os Vistos Gold, as empresas de fachada e toda a parafernália de mão dos suspeitos do costume, oligarcas e cleptocratas, um fio difícil mas não impossível de seguir até à origem criminosa, estavam, pelo menos em parte, nestes registos. O trabalho minucioso era desemaranhar o fio sem o quebrar, ligando todos os pontos de passagem do fluxo de dinheiro.

Portugal, porta de entrada na Europa para pseudo-sefarditas com fundos de milhões, para pseudo-investidores em lavagens de dinheiro e para fundos imobiliários sem limites nas aquisições. Portugal, país que ano após ano se degrada enquanto empurra o futuro para fora das suas fronteiras. Este não pode ser o país que queremos. Não é o país que merecemos. Nem é com este país que nos fazemos ouvir em Bruxelas. Os brandos costumes são silenciosos venenos.

PS: Maria Pevchikh, jornalista, activista, chefe de unidade da Fundação Anti-Corrupção, de Aleixei Navalny, exemplifica, informal e claramente, o funcionamento do registo UBO – no caso, também com propriedades de luxo em Portugal em nome do enteado da vice-primeira ministra russa, Tatyana Golikova, conforme foi anteriormente noticiado nos media portugueses.

PS 2: Recomendo a leitura do excelente A Vingança da Geografia, de Robert D. Kaplan, publicado pelo Clube do Autor, geopolítica de facto.

A autora escreve segundo a antiga ortografia