A entrevista do ministro das finanças, administração pública e saúde, Dr. Mário Centeno, ao jornal Público de 23 de julho, teve o condão de envolver 8 perguntas especificamente sobre o serviço nacional de saúde (SNS), todas absolutamente justificadas.

O nosso ministro, impante, insiste que aumentou o orçamento para o SNS e que há mais médicos e enfermeiros, como se isso fosse suficiente para travar a degradação progressiva do SNS. Não é. Pior, o nosso homem no euro acha que as condições de trabalho estão melhores “desde logo com a redução da semana de trabalho para as 35 horas”. Alguém que lhe explique que melhores condições de trabalho não é ter de fazer o mesmo em menos horas de trabalho. Não? Ou será deixar por fazer, porque o tempo não sobra? Ou será pagar horas extraordinárias ou contratar mais pessoas, porque afinal há trabalho que não pode ser adiado?

O Dr. Centeno pensa que se o SNS é mau, não tem nada a ver com ele. Gastem menos. Não prescrevam remédios que a vida está cara. Brilhante. O problema é que às vezes, não raras, nem há sabão ou papel para secar as mãos.

Mas a afirmação mais importante do Dr. Centeno é mais uma farpa ao seu “adjunto”, Prof. Adalberto Fernandes. “Estamos a pôr os recursos e a sociedade espera que o SNS responda”. Ou seja, eu já dei o que posso dar – julga ele – e se a coisa não funciona a culpa é do madraço que faz de capataz para o SNS e dos gestores que são uma nódoa – coisa que já tinha dito na Assembleia da República (AR). Ponto final, não me venham com conversas de mais dinheiro. Já dei muito. Acrescentar 233 milhões por ano (os 700 milhões divididos por 3 anos), quando, em 2017, a dívida cresceu ao ritmo de 46 milhões por mês foi, no entender do senhor ministro, reforçar muito o investimento. Ou seja, o Dr. Centeno pensa que se o SNS é mau, não tem nada a ver com ele. Gastem menos. Não prescrevam remédios que a vida está cara. Brilhante. O problema é que às vezes, não raras, nem há sabão ou papel para secar as mãos.

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É verdade que o orçamento bruto, em termos de verbas transferidas do orçamento do estado (OE), aumentou, mas o líquido para o SNS tem diminuído. O aumento da dívida a fornecedores, em especial à indústria farmacêutica, é o exemplo mais claro. Durante o período do resgate financeiro a dívida a fornecedores diminuiu, mas desde aí não para de aumentar.

Falta, acima de tudo, paciência a quem trabalha no SNS e, aos utentes que o procuram, capacidade para continuar a esperar.

É verdade que os recursos humanos têm crescido e não me tenho poupado em louvar esse facto. Mas falta tudo o resto. Faltam tecnologias, renovação de equipamentos, construções hospitalares, informática adequada, camas de internamento, acesso atempado a cuidados. Falta, acima de tudo, paciência a quem trabalha no SNS e, aos utentes que o procuram, capacidade para continuar a esperar. É preciso maior controlo de qualidade, maior eficiência, mais dinheiro, melhor equipamento, remunerações competitivas, mais profissionais e não só médicos e enfermeiros.

Nada que se resolva em pouco tempo, no que o ministro secundário da saúde, Prof. Adalberto Campos Fernandes tem razão, e não se poderá chegar lá financiando o SNS com o dinheiro da ADSE, cuja função não é essa, nem apenas com o controlo de salários – coisa que ao governo não dá jeito admitir -, nem com o controlo da despesa em medicamentos por via do racionamento irracional e da procrastinação no início dos tratamentos que aguardam decisões do INFARMED. Nada disso. O SNS, mais de 50 anos depois do Dr. Baltazar Rebelo de Sousa ter dado os passos fundamentais para a sua constituição, precisa de ser reformado, tem de evoluir.

É neste sentido que se deve aplaudir a iniciativa de propor uma nova lei de bases para a saúde. O trabalho realizado pela Dra. Maria de Belém Roseira e o seu grupo é muito meritório e dele merece resultar uma votação que aprove o diploma, pelo menos com o voto de todos os partidos não comunistas, depois de terem sido introduzidas alterações essenciais e inevitáveis.

O ideal seria uma aprovação unânime, mas as posições dos comunistas do BE, PCP e do seu satélite verde, não deixam antever esse milagre. É certo que o texto é, como quase sempre em Portugal, longo, palavroso, repetitivo, geral e muitas vezes inócuo. Tem a virtude de tornar explícitas algumas das disposições do artigo 64 da Constituição. Não é coisa pouca. Introduz temáticas relevantes e tantas vezes esquecidas como a saúde mental e ocupacional. Abre as portas ao novo presente e fala de genética.

O trabalho realizado pela Dra. Maria de Belém Roseira e o seu grupo é muito meritório e dele merece resultar uma votação que aprove o diploma, pelo menos com o voto de todos os partidos não comunistas-

Percebe-se que foi escrita a várias mãos e necessita de uniformização de linguagem e estilo. “Portador de deficiência”, para dar um exemplo, é uma designação estigmatizante, já que a deficiência não é fardo que se carrega, mas uma limitação que se minimiza e se tenta, com ajuda, ultrapassar. “Raça e cor”, para dar outro exemplo, não são termos com dimensão social ou biológica que se devam usar nos tempos de hoje, quando se poderia usar “etnia” (isto ultrapassa o politicamente correto mas abstenho-me de elaborar sobre o meu ponto de vista, em que sou acompanhado por vários autores) ou, com maior precisão, “património genético”.

Não se deveria falar de comportamentos “nocivos” quando o interesse da saúde pública é exercido sobre os comportamentos “potencialmente nocivos”. Os ganhos em saúde não devem ser objeto de “melhoria”, mas são para ser “obtidos de forma continuada e progressiva”. Não deve haver tempos de espera “clinicamente recomendados” ou “em tempo útil”, mas sim “adequados à situação de saúde”. Está quase ausente em todo o texto a noção de “necessidade” como motor da intervenção na saúde. A adequação das respostas é determinada pela necessidade que deve ser medida em termos de sintomatologia, disfunção e grau de gravidade, ou seja, o risco de vida ou incapacidade. Não é o “tempo máximo de resposta garantido” que nos interessa mas sim o tempo real de espera. “Olhe, eu sei que é uma maçada estar há três meses à espera da TAC mas note que está dentro dos tempos que a lei permite”? “Certo. Vou dizer isso à minha ciática”.

A lei merecia ter uma linguagem mais científica e de acordo com a moderna saúde pública. O texto omite formas de poluição, como o ruído, e deveria ter mais ênfase na segurança e prevenção de acidentes. A avaliação de impactes na saúde, para as políticas públicas e para obras e urbanismo, deveria ser obrigatória e estar na Base IV,  sobre Política de Saúde, da proposta de lei. Falta uma dimensão mais exuberante para a “saúde em todas as políticas”, enquanto prioridade nacional e subordinante do desenho e implementação de políticas em todos os setores da sociedade, mesmo para aquelas que estejam para lá da esfera do estado central.

Não faz sentido avançar com a definição de profissionais de saúde que está espelhada no texto da proposta. Num contexto sistémico e de intervenção pluriprofissional e multissetorial, também deveriam ter inscrito os médicos veterinários e os engenheiros de ambiente e sanitários, em vez do habitual “entre outros”. Penso que bastaria dizer que profissionais de saúde são aqueles que concorram para a promoção e proteção do direito à saúde e forem assim designados na legislação. Orgulho-me de, contra o corporativismo de outros grupos, ter defendido e conseguido a designação legal de profissionais de saúde para os técnicos de emergência do INEM. Existirão outros exemplos que desaconselharão o elenco de putativos “profissionais de saúde” na lei de bases.

A lei, “socialista” na sua génese, não resiste a criar mais uma comissão, desta vez a de acompanhamento da lei de bases

A lei é omissa na necessidade de uma intervenção decisiva do ministério da saúde na formação pré, não apenas pós-graduada, dos profissionais de saúde. Pior, é errado definir atribuições na lei de bases a organismos da administração pública como o INSA ou a DGS. Isso é matéria de leis orgânicas e nada deve impedir que no futuro possam existir novas denominações para organismos e agências do governo com as funções que a lei de bases pretende, bem, atribuir-lhes. E a lei, “socialista” na sua génese, não resiste a criar mais uma comissão, desta vez a de acompanhamento da lei de bases. Não caberá ao governo e à AR zelar pelo cumprimento das leis e fiscalizar a sua aplicação? Não há um Conselho Nacional de Saúde? Mais uma comissão? Francamente.

Enfim, até agora mencionei pequenos pontos, imprecisões de linguagem e possíveis caminhos de legística que uma boa conversa pode resolver com facilidade. Haja boa vontade. A proposta de lei tem uma abordagem equilibrada sobre o papel futuro das parcerias público-privadas, aquelas que foram uma boa introdução na estrutura do SNS e cujos méritos se devem ao PS.

A lei assumirá, em Base própria, a necessidade de manter “taxas moderadoras”, mas talvez já seja tempo de as chamar de “co-pagamentos” cuja função possa ser, duplamente, moderar a procura e ajudar a sustentar financeiramente o SNS. A gratuitidade absoluta, como a lei de bases em apreço prevê, contempla uma adequação à situação social e económica dos beneficiários, exatamente o que está na Constituição.

A lei assumirá, em Base própria, a necessidade de manter “taxas moderadoras”, mas talvez já seja tempo de as chamar de “co-pagamentos” cuja função possa ser, duplamente, moderar a procura e ajudar a sustentar financeiramente o SNS

De qualquer modo, o texto ainda é demasiado estatizante na sua abordagem intrínseca do sistema de saúde. Mais do que uma lei sistémica, a lei de bases proposta é uma lei sobre o SNS. Nisso, é pobre. Tem duas falhas que urge serem resolvidas em nome do papel da lei de bases como agente de mudança. Por um lado, omite o direito de livre escolha do utente por quem e onde quer ser tratado. Por outro lado, insiste num modelo de financiamento quase só sustentado no OE, sem abrir a possibilidade de haver um sistema de seguro público universal que permita a qualquer beneficiário recorrer, em pé de igualdade, a todos os serviços públicos, sociais ou privados que ofereçam a resposta necessária de forma regulada, fiscalizada, eficiente, célere e efetiva. A lei de bases omite os subsistemas públicos e apenas menciona seguros privados que são, não poderia ser de outra forma, de adesão voluntária.

O Estado não pode ter a arrogância de achar que é prestador único ou que é sempre melhor do que as alternativas privadas. Não é. Tem campos de intervenção e especialização onde é insubstituível, por força da demografia, da geografia ou da tecnologia, mas não pode querer tudo só para si ou para aqueles com quem convencionar acordos, quase sempre leoninos e desmotivadores de uma oferta com qualidade e rápida. Experimentem marcar uma consulta num hospital privado pela ADSE ou, em alternativa, como pagadores em nome próprio para verem a diferença no tempo de espera.

Se a lei de bases não alterar o futuro do financiamento, nada mudará. Não valerá o esforço que os seus autores já tiveram. Apenas servirá para ser um fator de atrito parlamentar e um número político de um PS que pressiona à esquerda, empurra à direita e deixa ficar tudo na mesma. É o estilo “Costa”, mas a saúde tem de ter mudanças mais profundas do que as que estão no texto de sessenta e uma Bases.  Daqui a uns anos, na dependência dos 4,0% do PIB que o Estado ainda só estará disposto a gastar, teremos um novo “Centeno”, austero no pensamento e sorridente nos modos, a explicar que cada vez há mais dinheiro para a saúde e que, apesar da pletora de profissionais, esgotados e mal pagos, se as coisas não estiverem bem será por culpa do colega que então tutelar esse imbróglio a que talvez ainda se chame Serviço Nacional de Saúde.