As grandes ameaças à liberdade não vêm dos sítios mais evidentes – quero dizer, também podem vir, mas para esses já nós estamos de sentinela. A extrema-direita, a extrema-esquerda, esta coisa woke ou lá como chamam a esta nova modalidade de gente tarada, seitas políticas, religiosas ou as que partilham ambas as qualidades. Contra isso estamos todos mais ou menos de acordo: cada tribo volta-se contra a tribo contrária, ambas alegadamente preocupadas com o fim da liberdade que a outra representa, o que paradoxalmente acaba por gerar um certo grau de equilíbrio de forças. Mas há fenómenos piores.

A pandemia fala por todos eles, como exemplo. O fenómeno começou nas televisões e na imprensa, na verdade, e o êxtase com que se anunciava nova calamidade foi capaz de colar toda a gente à informação tornada entretenimento. Depois vieram os especialistas, os matemáticos que explicavam, de forma científica, que o crescimento das infecções e das mortes ia ser catastrófico se não encurralassem o planeta em casa – quando não era preciso ser matemático para perceber que aqueles modelos diziam que, sendo aplicados como eram explicados, num país de 10 milhões de habitantes, as infecções podiam chegar mesmo ao infinito. Era tudo «exponencial». E o país e o mundo fecharam-se em casa, seguindo as directivas da «democracia» chinesa, não precisando sequer de uma ordem específica. No dia em que o Governo decretou o encerramento da sociedade, já não havia ninguém nos transportes, as escolas estavam desertas – a minha filha e outro desgraçado colega foram as duas últimas almas a abandonar a creche, a maioria já não lá ia há vários dias.

Os Governos não inventaram nada. Responderam aos anseios de quem vota e começaram a fazer de conta que estavam a fazer coisas importantes para que as pessoas que têm voz pública não desatassem a apontar o dedo a quem devia tomar decisões para evitar o fim da humanidade. Rodearam-se de especialistas que comungavam o catastrofismo e rejeitaram ouvir os outros. Lembram-se como o Conselho Nacional de Saúde Pública foi erradicado do processo de tomada de decisão? Na altura houve mesmo quem chegasse a pôr em causa a sua composição: o Conselho de Saúde Pública não era só composto de médicos, havia lá gente de várias áreas de actividade. Imagine-se: nós chegámos a achar estranho que a Saúde Pública, no caso da pandemia, não fosse tratada como uma questão social, mas como exclusivamente médica. A paixão ocidental pelos métodos asiáticos de tratamento sanitário estava consumada. E começou uma narrativa e uma avalanche de medidas – da permissão de ir a Mafra a Setúbal, com a proibição de ir de Setúbal a Tróia, às detenções arbitrárias pela criminosa ingestão de alimentos na via pública, passando pela infractora decisão de fazer surf, houve parvoíces para todos os gostos.

Eram só duas semanas para achatar a curva e dar tempo ao SNS, para se reforçarem os meios e não sobrecarregar o sistema, porque íamos morrer todos em catadupa por mero contacto físico ou, pior, por mero minuto de repouso num banco de jardim. Uma chantagem absoluta feita com base na posição de fragilidade dos mais velhos – «é preciso salvar os avós», como se eles não tivessem também a sua liberdade e o direito de escolher o que queriam fazer; e os velhos foram então deixados à sua sorte, tantos deles isolados, muitos a morrer desacompanhados, sem cuidados médicos, nada. Funcionários de lares rejeitados pelas suas próprias famílias porque traziam o vírus do local de trabalho. Velhos deixados à sede e ao calor porque tinham de ficar isolados e havia almas que se recusavam a entrar nos quartos para ligar ventoinhas. Até ao caso esplendoroso daquele lar de Reguengos onde se deu um verdadeiro massacre – em vidas e em moral. E passando pelo meu momento favorito da «crise pandémica»: uma velhinha num lar, filmada por um repórter de imagem, acenava aos familiares, que a tinham ido visitar à distância, todos do lado de fora de um vidro, e a pobre senhora do lado de dentro. A família inteira chorava, a velhota chorava, provavelmente chorou toda a gente que viu a peça no telejornal, e não passou pela cabeça de ninguém que não havia razão nenhuma para aquela família não poder estar ao lado da velha, já que o repórter estava coladinho a ela.

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Depois era preciso mais tempo. Os quinze dias passaram a mais quinze dias, mais quinze dias, mais quinze dias, e depois era só até chegar a vacina. Depois chegou a vacina e também não era suficiente. Era preciso mais uma dose. Depois outra. Agora mais uma. E agora ainda mais uma, mas só para estes e para aqueles. Veio, por fim, uma divisão entre cidadãos bons e maus, puros e impuros, responsáveis e irresponsáveis: um certificado sanitário, como um ferro quente que marca o gado. E uma ideia que se chegou a gerar de que quem não se vacinasse não devia poder gozar de liberdade. Aquela liberdade que estava a ser reconhecida pelas autoridades sanitárias, desafiando o pressuposto de que é o Estado que se deve limitar em função da liberdade de que cada um goza.

Quando a narrativa pegou, a coisa chegou a toda a gente. Mas a coisa não começou onde é difícil viver. Não começou nos subúrbios, onde os autocarros ainda seguiam pejados de gente desesperada por trabalhar, enquanto a burguesia lisboeta, instalada nas suas poltronas a pôr as séries em dia, a fazer bolinhos para a filharada e a descobrir o seu «eu interior», se insurgia onde podia gritando «fechem tudo!». Entre nós, e provavelmente em todo o ocidente, o suicídio económico e social colectivo que foi cometido – e de que agora todos, especialmente e mais uma vez os mais pobres, sentimos – veio de uma elite assustada, tão assustada com tudo o que interfere com o seu aborrecimento permanente, que exigiu aos governos que fizessem qualquer coisa que os sossegasse de alguma maneira. Conseguiram.

Os últimos dois anos não foram um momento de ruptura. Foram o clímax de um certo ar do tempo que fazia adivinhar coisas como a nossa reacção colectiva a um fenómeno natural e social como uma pandemia. Seguir-se-ão outros momentos semelhantes: já provámos que somos colectivamente capazes de seguir até ao abismo. No fim de Março de 2020, enquanto se exigia que tudo fosse fechado, escrevi que se iniciava naquele momento o combate de uma civilização pela liberdade e pela democracia, se alguém o quisesse mesmo travar. Houve quem o fizesse – ao contrário de mim que, sendo o inútil que sou, me limito a escrever coisas que não são lidas, a cumprir legislação razoável e a incumprir legislação absurda. Uma dessas pessoas foi um pai de Torres Vedras, que lutou em tribunal contra a prisão domiciliária de um filho, numa daquelas alturas em que se encarceravam crianças e jovens, turmas inteiras, porque um dos colegas acusava positivo num teste. O Tribunal Constitucional deu-lhe razão. Já há semanas tinha sido notícia uma outra decisãodo Constitucional relativamente a um processo de prisão domiciliária por razões sanitárias, às mãos do SEF, de um cidadão vindo do Brasil. Este último caso ainda foi notícia – para que se começasse a lamentar que estas decisões pudessem vir a interferir com a «nova lei de emergência sanitária», não havendo quem, no caso, tivesse feito notar que talvez seja a «nova lei de emergência sanitária» que deve cumprir a Constituição, e não o contrário. Já o primeiro caso, o do pai de Torres Vedras, salvo erro, não foi notícia em parte alguma. A luta pela liberdade já não entusiasma as massas entretidas e embrutecidas pelo espectáculo das televisões.

É, contudo, aqui que está a minha dose razoável de optimismo: há ainda por aqui uma réstia de esperança nas instituições e na democracia que temos e, sim, nas pessoas. Daqui segue um abraço ao pai de Torres Vedras e um agradecimento.

Orwell dizia que todos os santos são culpados enquanto não se demonstrar o contrário. Imagino que, num tempo em que nós nos tornámos carrascos de nós próprios, já não sejamos capazes de lhe dar razão. Mas Orwell tinha razão. Estes anos e os que se avizinham são, pois, anos de combate pela liberdade. Quem o quiser fazer terá o dever essencial de questionar todos os poderes: o político, o económico e o poder da informação, entre nós essencialmente simbolizado pelo entretenimento noticioso. As democracias não morrem por ataques exteriores, mas por corrosão no seu interior; não caem pelos políticos, mas por sociedades dispostas a abdicar da sua liberdade. O chão comum da democracia construir-se-á por aqui – pelos «pais de Torres Vedras», e não pelas vacuidades de um qualquer apresentador de telejornal ou pelas banalidades de um qualquer político. Menos ainda pelos cinismos de um Santos Silva ou pelos messianismos de um Gouveia e Melo. Desenvolvo este tema depois: são só mais quinze dias.