Há dias a CNN Portugal passou um programa sobre o percurso de Volodymyr Zelensky. De comediante, por vezes indecoroso, a presidente da Ucrânia e a um dos líderes mais admirados do mundo livre. O processo de transformação seria equivalente a Herman José ser eleito presidente e tornar-se num líder feroz perante uma invasão espanhola. A pergunta que muitos fazem é como é possível um comediante chegar à chefia de um estado. A pergunta que me tenho colocado é como é que alguém aparentemente leviano, frívolo e fútil, se assume como o contrário disso, um chefe firme, consistente, que distingue o certo do errado e que tem a coragem para agir em conformidade. Mais, que faz o que está certo mesmo que não fosse condenável se não o fizesse. Possivelmente, se tivesse aceite a oferta de fuga norte-americana os russos teriam sido bem sucedidos e Zelensky chefiaria um governo no exílio. Não seria a primeira vez nem será a última.

Zelensky era o tipo de pessoa de quem não se esperava uma atitude como a que tomou. Putin cometeu o mesmo erro ao substimar um homem que devia desprezar por tudo o que ele representava. É que a surpresa não está em Zelensky ter sido actor, mas em ter sido o actor que foi, ter representado os papéis que representou, de quase palhaço, da risota parva e inconsequente. Nada no seu perfil fazia esperar isto.

Mas se olharmos para a história vemos que é o que geralmente sucede. De Winston Churchill dizia-se que lhe faltava discernimento. Stanley Baldwin, no seu tereiro mandato enquanto primeiro-ministro, chegou a comentar que entre as muitas qualidades atribuídas à nascença a Churchill lhe tinham sido negadas o discernimento e a sabedoria, razão pela qual jamais seguiriam o seu conselho (‘Churchill – Walking with Destiny’, Andrew Roberts). O próprio rei Jorge V não via com bons olhos a hipótese de Churchill ser primeiro-ministro. Com um feitio fora do comum, um tanto ou quanto excêntrico e com um comportamento errático Churchill, não parecia ser o mais fiável dos políticos da Grã-Bretanha. Apesar de tudo era conhecido, tinha linhagem (o que ainda era relevante à época em Westminster), ao contrário de Charles de Gaulle. Este vinha de uma família de classe média francesa, católica e com ligações à causa monárquica. Quando de Gaulle leu, a partir de Londres, a declaração radiofónica de 18 de Junho de 1940, foram poucos os que o ouviram; praticamente ninguém o conhecia. De Gaulle era um estranho para os franceses e, durante os primeiros tempos, poucos em França conheciam as suas actividades.

O que Churchill e de Gaulle tinham em comum foi o terem alterado o destino. Com 65 anos o primeiro já não esperava ser chefe de um governo e de Gaulle com 50 sentia que a vida lhe passava ao lado. Tanto um como o outro surgiram quando não aceitaram os factos que tantos consideravam consumados. Na altura foram vilipendiados, de Gaulle foi mesmo considerado um traidor. Na mesma linha Reagan era um actor de segunda que ia hostilizar a URSS e colocar em perigo a vida d emilhões de pessoas; Thatcher, uma mulher, filha de um merceeiro que inicialmente se deixava intimidar pelas figuras de Wilson e Heath e que os seus pares encaravam como uma líder transitória até que alguém mais adequado surgisse. João Paulo II escapava dos trâmites consensuais para um Papa. Lech Walesa, um electricista num estaleiro naval. Hoje são celebrados como heróis porque não aceitaram os factos e ao não aceitá-los mudaram a história.

Como Zelensky ao recusar a boleia dos norte-americanos. Ninguém esperava a resistência ucraniana. Esta surgiu porque os ucranianos lutaram e tiveram alguém a uni-los nessa luta. O que está a suceder na Ucrânia é extraordinário num tempo em que se julgava que os actos heróicos eram assuntos do passado mas, como no Ulysses de Tennyson, o que somos, somos e ainda há quem se disponha a encontrar no sentido último da vida algo mais grandioso que o mero passar do tempo e que é a passagem da memória.

Mas o ponto a salientar é que seria de esperar que uma atitude como a de Zelensky surgisse de outra pessoa mais preparada, mais séria e circunspecta e jamais de um actor como ele. Quando André Malraux perguntou a Charles de Gaulle qual a figura internacional que mais admirava, na qual mais se revia a resposta extraordinária que ouviu foi que o seu único rival era Tintin. Porque tal como de Gaulle, enquanto presidente de uma potência menor, Tintin representava os pequenos que não se deixam enganar pelos grandes. Uma vez mais o exemplo de Zelensky evidencia que as ideias preconcebidas nos enganam, que a salvação raramente vem dos puros, sensatos e sérios, dos aparentemente perfeitos, dos que evitam cometer erros ou dos fisicamente mais fortes, mas sim daqueles de quem menos se espera.

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