Um destes dias, um antigo colega dos tempos de faculdade ligou-me. Tinha visto uma notícia onde eu era mencionada e, durante a conversa, confessou-me que, de entre toda a gente daquele tempo, nunca diria que iria ver-me a mim num papel de liderança. Curiosa, perguntei porquê. Elaborou dizendo que, como sempre fui mais reservada, criando muitas vezes espaço para outros brilharem, não imaginava ver-me nesta posição. Fiquei a pensar no assunto.

Culturalmente, tendemos a associar liderança à extroversão e, até, a algum egocentrismo. Tendemos a dar menos importância à capacidade de parar, observar, pensar antes de falar, e agir tendo o outro em mente. Nem sempre falar muito é o mesmo que falar bem (claro que, probabilisticamente, se falar muito, aumento as hipóteses de dizer alguma coisa acertada). Desde cedo, na escola, somos avaliados em parte pela participação nas aulas. Mais tarde, somos promovidos porque intervimos muito nas reuniões ou “aparecemos” mais em apresentações, criando a ilusão de que isso adiciona mais valor ao grupo.

Acredito numa liderança que serve as equipas e, portanto, aquilo que o meu colega dizia acerca de deixar os outros brilhar, calha muito bem. Não preciso de ir sempre à frente; aliás, por ser mais introvertida, muitas vezes prefiro quando são os outros a tomar a dianteira. Mas isso não quer dizer que não esteja “nos bastidores”, a tomar decisões e a ajudar a equipa a chegar a melhores resultados. E parece-me que é precisamente por se sentirem apoiadas que as pessoas gostam de trabalhar comigo. Sentem que podem testar novas abordagens, experimentar, debater ideias e que, no fim do dia, o seu trabalho vai brilhar. Toda a gente gosta de se sentir vista, por isso esta forma de ser pode ser útil para observar os outros e identificar neles potencial que os próprios nem sempre sabem que têm.

É, a meu ver, importante que se continuem a desconstruir as ideias de que apenas pessoas com um determinado conjunto de características podem ser boas líderes. Quando paramos de seguir “receitas” e prestamos atenção aos factos, aos resultados, deparamo-nos com líderes inesperados, que são capazes de exercer influência – muitas vezes sem autoridade formal – e que contribuem de forma muito positiva para os resultados, independentemente de traços psicológicos fixos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Ainda assim, se pensar numa característica que me pareça mais importante de se ter enquanto líder, ela é a adaptabilidade. Tendo esta, vamos conseguindo modelar as outras, aprender novos comportamentos que somos capazes de desempenhar com sucesso (mesmo que nos consumam mais energia). E até mesmo esta característica pode ser aprendida, se não nos for natural.

Afinal de contas, a liderança não depende unicamente de certos traços de personalidade; não há uma receita única que funcione para todos. Mas é importante, a nível organizacional, dar espaço às líderes e aos líderes inesperados; pessoas que talvez até nem acreditem muito em si mesmas, mas que são capazes de identificar e resolver problemas, remover obstáculos, unir pessoas e, no fim do dia, alcançar resultados.

Mafalda Garcês é formada em Psicologia das Organizações e tem desenvolvido a sua carreira na área de Recursos Humanos, apoiando start-ups e scale-ups no seu processo de crescimento. Lidera hoje mais de oitenta pessoas – em áreas tão distintas quanto engenharia, suporte, produto, finanças e recursos humanos. Mafalda é focada na eficiência das equipas e no desenvolvimento pessoal e profissional de líderes. Recentemente, foi distinguida com o prémio “HR’s Rising Stars 2022”, entregue pela revista norte-americana Human Resource Executive.

O Observador associa-se à comunidade Portuguese Women in Tech para dar voz às mulheres que compõe o ecossistema tecnológico português. O artigo representa a opinião pessoal do autor enquadrada nos valores da comunidade.