“A emulsão… tomada em jejum – bastam duas colheres de sopa – dá a quem a bebeu, imediatamente, o génio político. O efeito, para nosso mal, é muito breve… não dura mais de 40 minutos.” Deve ter sido sob os efeitos de tão sublime poção que o nosso primeiro-ministro (PM) teve recentíssimas afirmações de autêntica genialidade, ainda que sem originalidade. A demissão do ministro da Saúde não resolveria os problemas do SNS, disse o nosso PM, nem que chova no estábulo onde o Dr. António Costa guardará os cavalinhos e as vacas voadoras. Concordo, precisamos de mudar de governo e não apenas de ministro da Saúde. Para factótum este serve e, confesso a minha surpresa, parece que até gosta.

Continuando a citar as palavras do nosso PM, “a Saúde é um setor onde com muita facilidade se tomam situações pontuais como paradigma”. Pois é, mas neste caso as tais “situações” não serão as exceções que, no dizer do nosso logicista governante, confirmam a regra. São mesmo situações que deveriam servir para que se tirassem lições e ajudassem alguns ministros a perderem o sorriso complacente com que assistem à degradação dos serviços públicos em Portugal. Pena que no seu percurso de oposição o PS nunca se tenha lembrado de que casos empolados nem sempre são um retrato fiel. Com os outros, os casos isolados são a prova de que nada funciona; com eles, são histerias de opositores.

Mas com mais ou menos casos, maior ou menor empolamento, a verdade é que a Saúde está numa situação crítica. Os casos multiplicam-se e até parece mesmo que há uma generalização da desmotivação, da insatisfação e do mau atendimento. Sejam francos, tão neutros quanto possível e admitam que os objetivos para a política de Saúde falharam ou estão próximos de falhar antes do fim da legislatura. Mesmo que a “culpa” — não sei bem o que é “culpa” em política – possa não ser só do governo em funções. Em qualquer caso, com ou sem “culpa”, a responsabilidade é sempre de quem governa. Note-se que o nosso PM, político avisado, não disse que não demitiria o seu ministro da Saúde. Apenas disse que a demissão do ministro da Saúde não traria melhor saúde, exceto para o próprio Prof. Campos Fernandes, que já deve andar a tomar Fluoxetina e Propranolol para ter mais ânimo e menos taquicardia.

Ora, retomando o título da publicação de onde retirei a citação inicial – O Livro Negro, de Giovanni Papini, ed. Livros do Brasil, Coleção Dois Mundos (na sua primeira vida) – julgo que uma boa base de trabalho para o futuro seria a elaboração de um Livro Negro da Saúde. Já chega de Livros Brancos, cheios de propostas e sempre remetendo para futuras comissões. Precisamos de um texto que, com clareza, elenque a negritude das coisas, o que está mal, como, onde, quando e porquê.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Alguém o deverá fazer. Preferencialmente um agente independente. Uma organização, um grupo de cidadãos, pessoas com os instrumentos e a capacidade necessária para o fazer. Indivíduos com boa vontade a quem sejam facultados os dados, franqueadas as portas, e dados os meios técnicos e financeiros. Poderia ser o Observatório Português dos Sistemas de Saúde, mas o seu historial de serviço à oposição nos tempos da Troika não lhe confere marca de isenção. Também há o Conselho das Ordens Profissionais, os Sindicatos, o Tribunal de Contas, a Entidade Reguladora, o Instituto Nacional de Saúde. Nenhum destes conseguiria distanciar-se de interesses próprios, seguramente legítimos, e das suas missões estatutárias. A Provedoria de Justiça não tem meios, nem vocação para esta tarefa. Um organismo internacional tende a cobrar quantias elevadas e não tem o sentimento – independência não exclui a necessidade de sentimentos e sensibilidades culturais nas análises — que lhes permita entender o que é, no que se tornou, em termos políticos e de expetativa do público, o nosso SNS. Uma consultora, das muitas que por aí pululam, pese embora a sua utilidade, não faria mais do que dizer o que o cliente já está à espera que seja dito. As Universidades, por melhores que sejam, dificilmente fariam um trabalho que não fosse realizado por um consórcio de várias ou mesmo delas todas. O melhor que me ocorre é o Conselho Nacional de Saúde (CNS), cuja independência deveria estar escorada totalmente na Assembleia da República (AR) mas que tem uma direção e composição merecedoras do maior respeito. Ou, houvesse em Portugal uma AR menos quezilenta e mais tecnicamente capacitada, uma comissão parlamentar, pese embora o descrédito em que estas têm caído. Enfim, o ideal seria que o nosso CNS funcionasse como uma UTAO, com a mesma proatividade, e daí pudesse sair o almejado Livro Negro.

O Livro seria uma lista de problemas com uma avaliação do seu enquadramento e das implicações deles resultantes a que se deveria aplicar uma solução, ou conjunto de soluções, com o respetivo custo financeiro, social e de impactes na saúde. Para todas as soluções em causa deveria haver uma análise de prós e contras, numa perspetiva local, regional e nacional. Um exercício de transparência. Tendo o Livro, poder-se-ia passar à elaboração de uma Lista Negra, sem medo das terminologias, que seria a enumeração, com uma ordenação seriada por prioridades, dos problemas que o governo se comprometeria a resolver num determinado prazo. Bem melhor do que a lengalenga dos programas eleitorais ou de governo que se escondem atrás de linguagens cifradas, hermetismos politicamente corretos ou lugares comuns de que ninguém discordará.

O PM tem razão quando diz que os fenómenos isolados tendem a ser percebidos como questões generalizadas. É assim em quase tudo. A psicologia explica. Tendemos a generalizar e a ser influenciados pelo último caso, diligentemente esquecendo todo o acumular de experiências passadas. A má impressão é sempre mais marcante e duradoura do que a sucessão de bons episódios. Cometemos erros cognitivos enquanto pessoas e sociedades, mas a razão do PM na análise psicológica não pode permitir a sobranceria de descartar incidentes que, mesmo isolados, dizem muito a quem foi afetado – 100% vítima — e podem servir de exemplo de ineficiências ou alertar para maiores problemas no futuro. Saber que há empolamento não serve, nem chega, para descurar o facto de que o todo, na perceção das pessoas, é sempre muito maior do que a soma das partes, por mais pequenas que estas sejam. Mas claro, Costa, que nunca é pequeno na apreciação dos seus méritos, não se coíbe de afirmar que, não sabemos se com “nós” majestático ou se o “nós” é do governo todo, “sofremos, porventura, do excesso do sucesso desta solução governativa”. Estou, confesso, estupefacto mas o nosso PM lá explica: “Imagine os problemas que haveria se não tivéssemos mudado de política”, não explicando a que política, nem a que mudança, se refere.

Pois bem, registemos, analisemos e tenhamos a coragem de compilar um Livro Negro, fazer uma Lista da mesma cor e, daí, partir para a implementação de soluções com calendário e financiamento adequado. Propostas, estudos, planos e programa não nos faltam. Mas, por alguma razão, nunca são implementados ou cumpridos. Talvez, quem sabe, nunca tenham sido desenhados para resolver a Lista Negra.

PS – Confesso a minha total ignorância sobre o suporte legal que levou um tribunal a cautelarmente providenciar para que não se procure petróleo e/ou gás natural na costa portuguesa. Mas convenhamos que, havendo necessidade de procurar formas diversas de sustentar o crescimento do PIB, afastar liminarmente a procura de mais recursos naturais parece pouco inteligente. Penso que caberá ao governo edificar uma estrutura legal à prova de providências e, simultaneamente, promover os estudos que determinem os potenciais impactos resultantes da prospeção de petróleo para o ambiente e saúde das pessoas. A Maternidade Alfredo da Costa (MAC) ainda está aberta, sem pessoal, sem meios e com uma estrutura anciã, porque uma juíza assim decidiu, sob o aplauso do PS e depois de intervenções parlamentares do Prof. Francisco Louçã que era deputado e ainda é, ao que julgo, casado com uma ilustre médica da dita Maternidade, a mesma que, com todo o direito, tinha, não sei se ainda tem, consultório na Rua Latino Coelho, meramente por acaso, logo ao lado da referida maternidade. Foi tudo uma feliz e enorme coincidência e nada nos deverá levar a duvidar da integridade moral de um bloquista, nem do interesse democrático, patriótico e de esquerda do BE e do PS, já nessa altura coligados na defesa da MAC. Longe de mim insinuar o contrário. Desta vez espero que o PS se oponha a uma providência cautelar que determine o encerramento de explorações que são mesmo só isso, explorações. Se não se procurar explorar outra coisa que não seja o bolso do portugueses, dificilmente teremos PIB que chegue para alimentar a saúde de que precisamos.