Viver num mundo onde o fanatismo espreita a toda a esquina e a má-fé vigia tudo não consola a alma. Mas será que leva ao abatimento radical? Admitindo alguma oscilação no capítulo, a minha resposta definitiva, se alguém me apontasse uma pistola à cabeça e me obrigasse a responder “sim” ou “não”, seria: não. É preciso sorte, é claro, para a resposta ser assim. Imensíssima sorte. Mas a vida, mesmo nas mais terríveis das situações, oferece, inesperadamente, motivos de sorte. Ninguém conta com eles, quando tudo à nossa volta parece obedecer ao princípio do pior, mas eis que, de repente, eles aparecem.
Se eu for contar a quantidade de desgraças que me aconteceram, e que me acontecem, precisava de colunas sobre colunas neste jornal. Consideremos a célebre perfídia alheia. Não me fales. Isto o mundo está cheio de gente de duvidosa moral. Defeitos próprios conducentes à auto-destruição? Rapaz, estou aqui para isso, e apliquei-me com esmero e dedicação. Azares que a pátria, sempre presente, proporciona? Quem não sabe e não se queixa? E estou a falar de quem verdadeiramente sabe e verdadeiramente sente e pensa aquilo de que se queixa. Erros de opinião e de leituras? A vida do espírito faz-se quase só disso e do reconhecimento disso, com um enigmático lugar para o que parece sobreviver, incólume, e que nos alimenta sem nos cansar. Desgostos de amor? Repetitivas biografias poderiam iluminar antagónicas vidas só com a história deles, e a minha não menos do que qualquer outra, com todas as possíveis reflexões retrospectivas entre a indiferença e o raríssimo sentimento de valor absoluto.
Estive, por estes dias, a rever, para a sua publicação, o texto de um artigo, há muito tempo escrito, sobre o primeiro livro de Fernando Gil, Aproximação Antropológica, editado em 1961 pela Guimarães Editores, pouco antes de ele partir para viver, estudar e trabalhar em Paris. É um livro de extrema juventude, no qual Fernando Gil não tinha um excessivo prazer em se rever. Acontece que o livro antecipa, à sua maneira, temas que se repetirão insistentemente na sua obra futura, que constitui aquela que é verosimilmente – desculpe-se este tipo de juízos, mas não cairia neles se tal não se me apresentasse como uma evidência absoluta — a maior contribuição portuguesa para o pensamento filosófico do século XX.
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