No momento em que escrevo decorrem as visitas do Presidente francês e da Chanceler alemã aos Estados Unidos. É o diretório europeu em plena operação, à procura de um equilíbrio adequado face à “nova política americana”, seja lá o que isso for. Os resultados das duas visitas não foram brilhantes e duas ilações, bastante eloquentes, falam por si: na relação transatlântica o diretório europeu não existe, isto é, a União Europeia não existe e, sintomaticamente, os dois líderes europeus prestaram-se a isso com um intervalo de algumas horas, em segundo lugar, a exuberância imperial e protocolar da visita de Macron contrasta com a simplicidade e a discrição de Merkel. Espero, muito sinceramente, que esta cenografia e coreografia não se repitam no plano europeu.

Entretanto, falta um ano, um pouco mais, para as próximas eleições europeias de maio de 2019. Falta, igualmente, um ano, um pouco menos, para concluir as negociações sobre o Brexit (março 2019). Finalmente, temos um novo governo de coligação ao centro na Alemanha e a chanceler Angela Merkel prepara, agora, o início do seu quarto mandato. Na União Europeia, o Presidente Draghi termina o seu mandato em outubro de 2018 à frente do BCE e o Presidente Juncker da Comissão Europeia em outubro de 2019. A Itália, depois de eleições, está sem governo constituído e a Espanha continua sem resolver o problema da autonomia/independência da Catalunha.

Ao mesmo tempo, o nacionalismo, mais conservador ou mais populista, cresce em toda a Europa. Os regimes iliberais já formam governo em alguns países da Europa de Leste. A Europa parece oscilar entre a prometida “soberania europeia” do Presidente Macron e a vaga nacionalista, soberanista e iliberal de partidos e movimentos da extrema direita e extrema esquerda.

Tudo sem esquecer que os grandes dossiers da política europeia – imigração e refugiados, segurança, defesa e política exterior, união bancária (3º pilar), orçamento plurianual e novos recursos próprios, orçamento da zona euro e mutualização das dívidas públicas, política monetária pós-Draghi, energia e alterações climáticas, mercado único e regulação digital – continuam em aberto e a aguardar as próximas etapas.

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A um ano das eleições europeias de Maio de 2019 e com quatro anos de governação do diretório franco-alemão à nossa frente, tudo, ou quase tudo, continua em aberto: macronização ou talvez não, eis a questão.

1. A “soberania europeia”, uma nova ambição para a Europa

Depois do movimento “república em marcha”, parece estar em curso a “grande marcha” sobre a Europa tendo em vista as eleições europeias de maio de 2019. Entre o discurso na Sorbonne de 26 de setembro de 2017 e o discurso no Parlamento Europeu de 17 de abril de 2018, a ambição europeia proposta pelo Presidente Macron não sofreu alterações substanciais, não obstante as eleições e os impasses na Alemanha, em Itália e em Espanha e o crescimento dos nacionalismos e populismos nos países do leste e norte europeus. Recordemos os tópicos essenciais dessa ambição europeia consagrada na expressão “a soberania europeia”:

  • Um orçamento específico para a zona euro (e um ministro europeu das finanças),
  • Mais convergência fiscal e social (um calendário para a harmonização),
  • Um programa europeu para financiar as coletividades locais que acolham refugiados,
  • Mais Europa da Defesa (a cooperação estruturada),
  • A generalização do programa Erasmus,
  • Uma taxa sobre as transações financeiras (um tema recorrente),
  • Uma taxa de carbono, também às importações (um tema recorrente)
  • Uma taxa sobre os negócios dos gigantes da tecnologia digital (mercado único digital),
  • A proposta de listas transnacionais para o Parlamento Europeu (não aprovada),
  • Uma proposta para proteger os direitos de autor e os criadores europeus,
  • A proposta de menos comissários na Comissão Europeia, de 30 para 15.

Como é evidente, não há feuille de routeou agenda europeia que resista às contingências internacionais e às interações fortuitas das políticas domésticas, já para não falar da natureza específica de cada um destas medidas programáticas, a sua distribuição espacial e temporal e o seu específico processo de tomada de decisão nas instituições europeias. É esta grande variedade do policy-processo primeiro grande obstáculo à macronizaçãoda política europeia. Digamos que falta sincronização à macronização da política europeia.

2. O homem e a política, o regresso do estilo De Gaulle-Mitterandien

Em EmmanuelMacron não é possível separar a personagem e a personalidade. O homem e o seu estilo ou o fascínio da representação simbólica e neste caso, também, investido de um duplo papel, a saber, a simbolização do império (diretório) franco-alemão. Na visita aos Estados Unidos o excesso de representação foi notório, ao ponto de ficarmos com algumas dúvidas acerca do género teatral que estava a decorrer à nossa frente. Sabemos, porém, que a União Europeia é uma democracia deliberativa multiníveis, extraordinariamente exigente do ponto de vista processual e procedimental e apesar do pragmatismo do diretório franco-alemão não é possível passar ao largo desse “pequeno detalhe” que é a negociação institucional e nas atuais circunstâncias é melhor não subestimar este aspeto crucial da convivência entre estados membros. Fica-nos, porém, um sentimento contraditório. Por um lado, apreciamos o fascínio da retórica discursiva e o lastro de sedução que ela deixa, como se fosse o argumento encantatório de uma peça literária e teatral, por outro, assalta-nos um sentimento paradoxal, ao mesmo tempo contraintuitivo e contraproducente, como se ficássemos a meio caminho de uma promessa que não sabemos como cumprir. Esta tentação para fundir ou confundir a personagem e a personalidade é a segunda grande dificuldade inerente à macronização da política europeia.

3. A política externa e a grande crise do multilateralismo liberal

Numa época marcada pelo narcisismo do presidente americano, o revisionismo do presidente russo, a ambição do presidente chinês, já para não falar de outros registos autoritários de importância igualmente relevante, só faltava mesmo a grandeza imperial do presidente francês, investido do papel da representação europeia. Esta constatação coloca, porém, a política externa e segurança comum da União Europeia num patamar de prioridade máxima e num contexto marcado por uma extrema imprevisibilidade. Os sinais são deveras preocupantes:

  • A época do internacionalismo liberal benevolente parece ter terminado,
  • O sistema multilateral atravessa uma crise profunda de confiança,
  • O período pós-guerra fria está em compasso de espera e sob uma tensão crescente,
  • O Reino Unido perde continuadamente poder desde o referendo sobre o Brexit,
  • Os Estados Unidos perdem a respeitabilidade e a reputação no plano internacional,
  • As regras e as instituições não são tidas em conta e são relegadas para plano secundário,
  • Os checks and balances não funcionam e os regimes iliberais aproveitam.

Num ambiente internacional extremamente contingente e exigente, a tentação quase imperial em ser investido desta dupla representação exterior, francesa e europeia, e ser o interlocutor privilegiado “entre mundos” deve ser prosseguida com prudência e moderação e não substituir o papel da diplomacia. Esta putativa pretensão nem sempre é boa conselheira e pode criar obstáculos desnecessários a uma benevolente macronização da política europeia.

4.  Um movimento reformista, algures entre os soberanistas e os federalistas

Para os soberanistas, que os há, também, com vários matizes, o discurso do Presidente Macron sobre harmonização, convergência e solidariedade, nos planos fiscal e social, significa, em primeira análise, mais centralização, mais transferências e mais federalismo. Logo inaceitável. Para os integracionistas, que os há igualmente com vários matizes, as democracias domésticas estão em risco se a Europa não reforçar a sua soberania democrática, o que implicará sempre o reforço do método comunitário de democracia deliberativa e maior volume de recursos próprios da União Europeia. O nacionalismo e o populismo iliberais são inaceitáveis e a autoridade da democracia não se confunde com a democracia autoritária, nas palavras do próprio Presidente Macron. Donde a procura de um “centro radical”, um movimento reformista, também europeu, que “vai morder” no campo instalado do partido popular europeu e do partido socialista europeu. Neste centro  radical, pela sua própria natureza, acredita-se que será possível temperar os vários ímpetos reformistas pelo simples jogo dos checks and balances do policy-process europeu. É uma operação política de grande envergadura, veremos se a fragmentação política doméstica é transposta para o sistema binário (PPE e PSE) que domina o Parlamento Europeu. Este enorme desafio é um obstáculo de monta à macronização da política europeia.

5. A prioridade à zona euro, um erro de avaliação estratégico?

A prioridade à zona euro implica colocar duas opções políticas que podem, de resto, ser complementares se, para tanto, existirem recursos bastantes: acelerar a integração da zona euro já existente passando a um patamar político superior ou, em alternativa, criar as condições necessárias para favorecer a convergência e integração dos estados membros que o desejem. A primeira opção cria uma Europa a duas velocidades, a segunda opção é uma demonstração de solidariedade política e visa impedir uma Europa a duas velocidades. A escolha do Presidente Macron é, em primeira análise, pela primeira opção, embora não rejeite uma política de convergência aos estados não-membros.

E quem está em condições de definir esta prioridade política tão elevada? Não é um diretório, não é um pequeno grupo de países iluminados ou um grupo de fundadores investidos de algum privilégio histórico. De facto, uma Europa a duas velocidades, no atual estado da arte do projeto europeu significará, muito provavelmente, o fim da aventura unionista tal como a conhecemos hoje. Tratando-se de um projeto político da maior importância essa opção é perigosamente divisionista no presente momento e pode ser o pretexto que faltava para provocar a desagregação da construção europeia. Por isso, mais do que a arquitetura da zona euro, interessará, na atual conjuntura, uma boa conjugação de policy-instruments, tudo o mais corre o risco de ser instrumentalizado ao longo do próximo ato eleitoral.

De resto, não creio que a garantia comum de depósitos, a resolução comum de bancos, a mutualização das dívidas soberanas, a política monetária do BCE pós-Draghi ou a transformação do mecanismo europeu de estabilização (MEE) em fundo monetário europeu (FME) façam parte da agenda alemã no futuro próximo. Donde uma dificuldade adicional, e de monta, para a macronizaçãoda política europeia para a qual é preciso encontrar um bom mecanismo de compensação.

6. O Grande Compromisso, entre a zona euro e a segurança coletiva?

Eis o que pode deixar os cidadãos mais tranquilos nesta fase do projeto europeu, a saber, um compromisso político equilibrado entre os progressos moderados na zona euro (que interessa apenas 19 membros) e os progressos necessários na segurança coletiva em sentido amplo (e que interessam a todos os estados membros), onde se incluem todos os problemas de segurança interna, os problemas de gestão costeira e fronteiriça e as grandes questões de política internacional. Este é, também, o mecanismo de compensação que o Presidente Macron necessita para fazer o trade off entre a zona euro e a segurança coletiva. O problema da macronização da política europeia é que ela elege uma agenda sobrecarregada de problemas sem que para tal possua os meios, os parceiros e a estratégia operacional que são requeridos. Esta “revolução macroniana”, sendo consistente em si mesma, é manifestamente incompatível com os recursos e a vontade política que parecem disponíveis. Além disso, quando se desdobra, nas suas diversas dimensões e variáveis, um dossier particular como é o caso da segurança coletiva apercebemo-nos imediatamente da delicadeza dos problemas implicados, do seu efeito-dominó e da grandeza dos recursos financeiros envolvidos. Digamos que sem um GPS especializado não é possível viajar pelo labirinto macroniano, nem ter uma ideia mais rigorosa das prioridades, do calendário e dos recursos financeiros implicados. Sem esta orientação pelo território macroniano, fica claramente prejudicada amacronizaçãoda política europeia.

7. Os cisnes negros da política europeia

Chegados aqui, restam, ainda, os “cisnes negros” da política internacional e europeia para perturbar a macronizaçãodo projeto europeu. E nem sequer são tão improváveis como isso. Senão vejamos. Uma crise grave no comércio global feita de retaliações sucessivas já aí está, um sobressalto nos Balcãs dá alguns sinais, uma agressão russa no Báltico, uma declaração de guerra israelo-palestiniana ou xiita-sunita pode acontecer a qualquer momento, novas vagas de refugiados de guerra (do médio oriente e da zona do Sahel), novos ataques terroristas, uma crise financeira grave nos mercados e nas bolsas, uma crise energética grave (corte de abastecimentos), uma crise grave com o a Turquia de Erdogan (a propósito dos refugiados),a demissão do governo alemão e eleições antecipadas não é impossível dada a manifesta fragilidade da chanceler neste mandato, o risco de resgate de um país como a Itália não está fora de causa, a mudança drástica de orientação na política monetária do BCE é provável, a expulsão de um estado membro da União Europeia por violação de direitos fundamentais pode acontecer.

Bastaria o enunciado destes cisnes negros para que a política externa, de segurança comum e defesa, no que diz respeito à sua prevenção estrutural, ao nível de ataque imediato e à mitigação de danos, adquirisse a condição de política europeia de máxima prioridade, na linha, justamente, do que dissemos no ponto anterior. Creio que o envolvimento do Presidente Macron nesta matéria, pela força das circunstâncias, será a sua principal prioridade. O mundo ocidental precisa de um protagonista acreditado e ele estará lá, mas não será fácil e, sobretudo, a política europeia e a política francesa poderão sair prejudicadas.

Notas Finais

As eleições europeias de maio de 2019 revestem-se de uma extrema delicadeza para o projeto europeu. Daqui até lá, tudo pode ser objeto de instrumentalização e manipulação se não for usada uma enorme prudência e bom senso, nas propostas, coligações e estratégias políticas apresentadas durante a campanha que se avizinha. Daqui até maio de 2019 é preciso impedir uma radicalização destes dois movimentos, o soberanista e o integracionista, e evitar que entrem em rota de colisão, colocando em risco todas as iniciativas mais moderadas e reformistas de melhoramento do projeto europeu. Em política não se pode avançar ao mesmo tempo em todas as áreas, sendo fundamental encontrar a “dose certa de europa” que mobilize a adesão do maior número de europeus. Aqui, o fascínio redentor de EmmanuelMacron pode ser extraordinariamente mobilizador, mas, também, extraordinariamente contraproducente.

Veremos, nos próximos meses, como irá funcionar o diretório franco-alemão. No Conselho Europeu do final do mês de junho, já teremos uma panorâmica mais aproximada seja no que diz respeito aos temas da agenda europeia como ao grau de adesão dos restantes estados membros face às primeiras propostas do diretório. Em relação ao comportamento das personagens, espero que a exuberância de Macron e a moderação de Merkel nos proporcionem a “dose certa de Europa” de que precisamos nos próximos quatro anos.

Seja como for, o diretório deveria ter muito mais cautela com este “regime binário” que hoje estrutura e governa a União Europeia e que não é do agrado de muita gente. Nesse sentido, espero, ainda, que Macron não abuse da sua “posição dominante” na atual conjuntura, tirando partido da fragilidade interna da chanceler e da sua fragilidade externa em matéria de relação transatlântica, com o único propósito de retirar ganho de causa para a reforma da zona euro. Os alemães não apreciariam seguramente tal gesto. Termino como comecei e esperando, muito sinceramente, que a cenografia e coreografia americanas não tenham replicação no plano europeu, até por uma razão adicional: em vez da macronização apoteótica da Europa, poderíamos assistir a uma polarização anti-Macron, por exemplo, a um retrocesso no processo de integração liderado por uma Itália e por uma Alemanha radicalizadas! A Senhora Merkel não gostaria, seguramente, de ser lembrada como a responsável maior do descalabro do bipartidarismo alemão.

Universidade do Algarve