A liberdade é o bem mais precioso de uma nação. Perder a liberdade é perder praticamente tudo.

No final do século passado, findo o governo da nomenclatura que comandava a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), parecia terminada a época áurea dos regimes de pensamento único e planificação central. Pensava-se que a livre iniciativa não encontraria mais obstáculos à escala global. Visitei a antiga República Democrática Alemã (RDA), um país satélite do regime soviético, pouco antes da queda do “muro de Berlim” onde se liquidava quem tentava saltar para a liberdade. Quis o destino que cruzasse os olhos com a falta de alegria vivida em Berlim Oriental, pois, a empresa onde trabalhava tinha a sua sede na cidade dividida por esse muro infame. Passaram 32 anos, mas ainda recordo a tristeza testemunhada nos olhares.

Por cá, mesmo que as máscaras tapem os semblantes, mantemos um brilho nos olhos. Na cinzenta RDA, pelo contrário, tudo era baço. Lá nada brilhava, nem os edifícios, nem as viaturas, nem os olhos das pessoas…

Apesar do “novo normal”, ainda não perdemos a liberdade. Mas há um novo perigo a caminho e o risco de a perdermos nunca foi tão grande. Mais uma vez, trata-se de um problema que se está a propagar primeiramente na China e afetará todos nós. Também precisaremos de máscaras para lidar com as moedas digitais que aí vêm, as quais nada têm a ver com o dinheiro e cartões eletrónicos que conhecemos. As máscaras que teremos de utilizar são digitais, servindo para proteger a privacidade de cada um e defender a liberdade de todos. No entanto, estas máscaras não serão tão fáceis de obter como as que utilizamos contra a pandemia. Nas linhas seguintes, explico o que está em causa e deixo três referências científicas recentes 1,3,4 para quem pretenda conhecer com mais detalhe a natureza da ameaça que avança ao nosso encontro.

A evolução informática, com recurso à criptografia, veio garantir uma total confiança nas transações efetuadas diretamente pelas pessoas, mesmo entre desconhecidos. Embora contra-intuitivo, este facto tem vindo a ser comprovado pela existência de milhares de “criptomoedas” cujas contas batem sempre certo. Claro que isto dá que pensar aos bancos e a outros intermediários, cujo ofício é precisamente providenciar confiança.

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Embora estas moedas digitais tenham sido o primeiro exemplo da nova confiança distribuída pela tecnologia “blockchain”, a novidade que nos interessa não se resume ao Bitcoin e às demais criptomoedas. O impacto da mudança na própria génese da confiança não se limita à área financeira, porque poder confiar cegamente em dados e registos de transacções que envolvem desconhecidos é ainda mais vantajoso para planificar a política do que para gerir os negócios. Obviamente, esta nova possibilidade interessa a todos os governos, desde os democráticos aos totalitários.

Pela primeira vez, a administração de gigantescas bases de dados envolvendo transações entre as pessoas dispensa auditorias ou sequer opiniões de terceiros, dependendo, exclusivamente, de informações validadas matematicamente. Ora, a informação é poder e as implicações políticas de tamanha evolução tecnológica são extraordinárias, tanto para o bem como para o mal, sendo imprescindível que a mudança em curso suscite a maior atenção de eleitos e eleitores.

Caso exista a abertura política necessária para descentralizar os dados recolhidos sobre as transações dos cidadãos, a disponibilidade desta nova confiança digital pode traduzir-se na auto-organização da sociedade civil a níveis nunca vistos. Contrariamente ao dinheiro tradicional, as novas moedas digitais não têm apenas valor de troca, constituindo-se como incentivos monetários políticos e económicos. Pela primeira vez, estímulos financeiros individuais prestam-se à ação coletiva. Isto é algo de novo e nada tem a ver com o coletivismo de planificação central que “transforma todas as cores em cinzento”. Esta ação coletiva baseia-se na livre iniciativa e só pode ser garantida pelo uso de chaves criptográficas privadas nas transações realizadas pelos indivíduos. Se isto lhe parece confuso, é porque se trata de um marco histórico que assinala a descentralização do poder com rigor e segurança. Acontece uma vez na História. Além de protegerem a privacidade, tais chaves criptográficas defendem a propriedade dos dados e sinalizam quais as informações fidedignas, estimulando a inovação colaborativa e o empreendedorismo sustentável, tudo isto graças a um novo enquadramento ético da sociedade 1. No entanto, nem tudo são rosas e convém compreender o reverso da medalha desta inovação tecnológica.

Como as novas moedas digitais são programáveis com inteiro rigor, podem ser integradas em contratos auto-executáveis (“smart contracts”), permitindo transações automáticas sem intermediários para atingir, simultaneamente, objetivos individuais e coletivos. Esta autonomia tanto pode servir propósitos democráticos como totalitários, pelo que a privacidade (primeiro) e a liberdade (depois) ficam na estrita dependência da descentralização deste extraordinário poder informático. Isto implica que as futuras transações digitais sejam validadas por consensos obtidos em redes públicas e livres.

Infelizmente, vivemos uma grave crise e este assunto, apesar de ser muito importante, não parece urgente nem está na ordem do dia. Este silêncio ensurdecedor é um erro crasso para a democracia, pois, caso o controlo dos dados das transações digitais dos cidadãos seja centralizado e monopolizado pelo Estado, as moedas digitais trarão consigo o patrulhamento da vida das pessoas pelo governo. Mais: as moedas digitais podem tornar-se o único dinheiro disponível no “novo normal” pós-Covid-19 e traduzir-se na possibilidade de controlar politicamente todos os pagamentos dos consumidores. Isto convida ao autoritarismo e estas novas moedas programáveis podem mesmo transformar-se na versão moderna das senhas de racionamento características dos regimes totalitários.

Como é sabido, o polémico tratamento dos dados dos utilizadores de redes sociais tem servido objetivos de marketing talhados à medida dos consumidores. No entanto, enquanto as empresas se deparam com concorrência, os governos só a têm quando há eleições, pelo que o tratamento dos dados relativos aos pagamentos efetuados com moedas digitais servirá propósitos políticos talhados à medida dos governos. Acresce que utilizar redes sociais é opcional, mas consumir bens e serviços é inevitável, pelo que o “dinheiro vivo” e as moedas digitais descentralizadas (criptomoedas) são o último reduto da privacidade e liberdade dos cidadãos.

Não admira, pois, que a China queira banir as criptomoedas. O objetivo é assegurar a hegemonia do yuan digital, a moeda programável do regime. E não se pense que tal discriminação só acontecerá em regimes totalitários, porque o mundo está a mudar rapidamente. Adivinha-se a extinção do dinheiro físico e há muitos outros sinais nada auspiciosos para a democracia. É o caso do chamado “Plano Biden”, apresentado por um grupo de senadores norte-americanos para arrecadar 28 mil milhões de dólares lançando impostos sobre as criptomoedas. A ideia parece ser aprovar rapidamente esta medida apesar da sua implementação ser impossível num quadro democrático, como foi reconhecido pelo membro do Comité Bancário do Senado norte-americano, Pat Toomey, que a considerou “impraticável” por definir o estatuto de “corretor” de forma “excessivamente ampla”.

Como é sabido, milhões de indivíduos com literacia informática, especialmente de camadas mais jovens, manuseiam criptomoedas de forma autónoma. Basta-lhes um computador ou smartphone para funcionarem como corretores e transacionarem ativos digitais sem o auxílio de intermediários. Assim, estamos perante um “esbracejar de afogado” por parte do regulador. Para além desta medida atentar contra a privacidade, é impossível detalhar a composição de carteiras alojadas em corretoras descentralizadas ou até desligadas da própria rede. Portanto, para além de ser inconstitucional, o plano é inexequível porque se baseia num absurdo técnico. No entanto, talvez inspirada pela celeridade com que alguns governos resolvem os incómodos que envolvem direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, não só esta medida deverá avançar como outras ainda piores vão aparecendo. Por exemplo, ainda nos EUA, a proposta da emenda Warner-Portman, entretanto retirada, pretendia discriminar certas tecnologias de rede obrigando quem nelas colabora a reportar informações pessoais sobre os respectivos utilizadores. Segundo esta proposta, os desenvolvedores de software e participantes que apenas tratam da validação dos dados veiculados nas redes de criptomoedas teriam de reportar ao fisco informação pessoal sobre os milhares de indivíduos que nelas transacionam. Este novo absurdo técnico mostra como o mundo livre está iludido ou atrasado numa matéria que é crucial para a democracia, facto este que muito convém aos regimes autoritários.

Na China, há anos que os dados sobre o comportamento e as comunicações dos indivíduos nas redes sociais são cruzados com as respectivas transações comerciais 2. Com as moedas digitais, este processo torna-se ainda mais insidioso, aumentando o controlo político sobre os cidadãos por facilitar a discriminação dos pagamentos realizados por cada consumidor. É sabido que o governo chinês não se identifica com a democracia liberal e admite-se que a planificação central e o culto do líder sejam moralmente apreciados na China, mas será inadmissível a utilização da moeda digital do regime como instrumento para exportação da ordem política.

Não se duvide que os regimes totalitários de pensamento único irão conjugar esta evolução tecnológica com a inteligência artificial para centralizar e processar informação sobre a vida das pessoas, monitorando e controlando as respectivas transações. Entretanto, o risco de contaminação antidemocrática é global e a segurança será o argumento principal para convencer as populações a pactuarem com a devassa da privacidade, jogando com o medo e invocando riscos de redobrada criminalidade para vedar o acesso de cidadãos impolutos a chaves criptográficas privadas, ou seja, para proibir a utilização de máscaras digitais. Dirão que tal utilização seria muito perigosa, como se o facto de todos termos passado a usar máscaras faciais se tivesse traduzido num aumento súbito do número de assaltos. Nada mais falso. Obviamente, sempre existirão casos de polícia e a sofisticação dos crimes acompanha de perto a evolução tecnológica, mas é ingénuo e perigoso para a democracia transformar casos de polícia no policiamento de todos os casos. Aliás, o resultado mais provável da proibição destas máscaras digitais é a paulatina instauração de um Estado policial.

A verdade é que o principal sistema de incentivos da humanidade foi descentralizado e qualquer reversão autoritária deste processo não é compatível com a privacidade, liberdade e democracia. Atualmente, qualquer indivíduo tecnicamente habilitado pode criar redes de sistemas contábeis inteiramente fiáveis, existindo no mercado milhares de criptomoedas com valor real. Claro que a sociedade civil deve poder beneficiar desta descentralizadora inovação tecnológica, sendo que a grande questão não é técnica, mas sim política. Trata-se de decidir se as moedas digitais vencedoras sê-lo-ão por terem sido livremente criadas e escrutinadas concorrencialmente nas comunidades que as utilizam, ou se, em vez disso, resultarão de decretos governamentais e do patrocínio de plutocratas. Infelizmente, não há razões para otimismos nesta matéria. Afinal, a emancipação das pessoas não é um desígnio político universal e o livre arbítrio incomoda certos governos que irão aproveitar esta tecnologia, sim, para centralizar a informação sobre os cidadãos e reforçar o seu poder.

Em Portugal, os indicadores também não são animadores. Recentemente, foi transposta uma diretiva europeia que permite ao Ministério Público aceder a conversas privadas sem submeter o assunto à consideração de um juiz, o que atenta contra os direitos fundamentais dos cidadãos. Apesar de ter sido remetida pelo Presidente da República para o Tribunal Constitucional, é provável que esta legislação passe. Outro sinal dos tempos é uma recente proposta de revisão constitucional, espantosamente oriunda da dita área não socialista, que prevê a recolha de “metadados” (dados acerca dos dados) sobre as comunicações dos cidadãos, com a finalidade expressa de coligir informações para a República! Tal procedimento é atentatório da privacidade e escancara a porta à recolha de “metadados” associados às futuras moedas digitais centralizadas (CBDC) que estão na forja do BCE.

Concluindo, há que observar com urgência as implicações económicas 3 e políticas 4 da tecnologia blockchain, uma vez que foram alteradas as premissas da própria democracia. Depois de efetuada tal reflexão, certamente surgirão projetos políticos para defender a privacidade e a liberdade. Os cidadãos devem poder escolher entre os regimes “aberto” e “fechado” (não entre liberdade e segurança, como se tentará fazer crer), sendo que esta dicotomia se traduzirá na maior disputa política do século XXI.

[1] Rodrigues, D. D. (2021). “Blockchanging Trust: Ethical Metamorphosis in Business and Healthcare”. In D. Rodrigues (Eds.), Political and Economic Implications of Blockchain Technology in Business and Healthcare (pp. 1-41). IGI Global. Disponível aqui.

[2] France 24. France Médias Monde. (2019, May 1). “China ranks “good” and “bad” citizens with “social credit” system“. Disponível aqui.

[3] Rodrigues, D. D. (2021). “Blockchanging Money: Reengineering the Free World Incentive System“. In D. Rodrigues (Eds.), Political and Economic Implications of Blockchain Technology in Business and Healthcare (pp. 69-117). IGI Global.. Disponível aqui.

[4] Rodrigues, D. D., & Lopes, P. S. (2021). “Blockchanging Politics: Opening a Trustworthy but Hazardous Reforming Era“. In D. Rodrigues (Ed.), Political and Economic Implications of Blockchain Technology in Business and Healthcare (pp. 118-159). IGI Global. . Disponível aqui.