Uma coisa é consentir que se fica mais velho. Outra, é aceitar-se morrer. Consentir que se fica mais velho e aceitar-se morrer ficam quase nos antípodas uma coisa da outra.

Consentir que se fica mais velho supõe que as limitações que, entretanto, nos surpreendem dêem garra à relação com tudo aquilo que põe verdade em grande parte de nós e nos torna mais vivos. Aceitar-se morrer, que nos deixemos intoxicar pelo “pó dos dias”. Que, todo junto, nos empanturram de porcariazinhas menores, nos fazem quase esquecer as nossas escolhas e nos conduzem até ao purgatório das pessoas que, não sendo más, nos fazem mal. Que nos puxam para aquilo que faz com que elas “morram”, aos bocadinhos. E com que nos “matam”. Quase sem querer.

As pessoas “matam-nos”, muitas vezes, sem querer! Quando nos olham de soslaio e entendem que, por não acolhermos os aspectos com que os “burocratas da vida” nos atormentam e nos desqualificam, somos pessoas “menores. Ou quando pegam num pormenor da sua vida, que as atormenta, e o transformam num pretexto supremacista com que nos dão a entender que nunca estaremos ao nível de as entender porque não teremos tido a mesma vida que tiveram, com o rigor milimétrico com que concluem que não somos iguais a elas. Ou quando, para não nos invejarem declaradamente nos desvalorizam, veladamente. Ou quando, de zangadas com tudo, as incomoda os dias de sol que reconhecem nalguns olhares, e não descansam enquanto não os intoxicam com os seus azedumes, que se “agarram à pele” e que não se “descolam”. Ou quando, antes de qualquer afirmação que nos dirijam, usam (várias vezes) os “Eu posso estar enganado…” dos falsos humildes e condicionam todos os nossos: “Pois está!”, porque a sua maldade fica a marinar, dentro de nós, nas entrelinhas e nas meias-palavras daquilo que nos dizem, e nunca nos deixa ser capazes de as olhar nos olhos e de as enfrentar com alma, quando estamos com elas; como só nós merecíamos. E “matam-nos” quando desconfiam que somos capazes de lutar por um sonho ou, simplesmente, pelo amor. E, com a condescendência dos invejosos, nos dizem “Isso passa…”. Ou, como um presságio, como se nos quisessem bem, rematam, aqui e ali: “Espera para quando lá chegares. E tu vais ver…”, que nos põe ao nível de um incapaz que faz de tudo aquilo que sentia até aí a tremedeira de uma gelatina da Royal. Ou, esforçando-se para serem gentis, nos garantem que não podem concordar – “em tudo” – com aquilo que dizemos, como se nós esperássemos delas aquilo que elas, com essa escorregadela, dão a entender que exigem de nós. Ou quando nos ignoram, de propósito, e depois, com um grande sorriso, em vez de pedirem desculpa, o melhor que nos dizem é: “Estava distraído…”, próprio de quem imagina que não damos por nada. Ou, quando nos sentem a discorrer e a perguntar, nos dizem que o problema somos nós, quando rematam com um: “És muito complicado…”. Ou nos “atropelam” só com mais um: “Tu pensas demais!”.

As pessoas não são, tantas vezes, tão boas pessoas umas para as outras como elas imaginam. Magoam-se umas às outras. Muitas vezes! E, pior, nem sempre o fazem “sem querer”. E quando nos magoam levam-nos a ficar “possuídos” pela vergonha (estranha!) de sermos como somos, como se, ao não sermos como elas, lhes devêssemos desculpas.

As pessoas não são, tantas vezes, tão verdadeiras entre si como supõem. Defendem princípios, claro. Sufragam os dos outros; quase sempre. Mas fica-nos, tantas vezes, a sensação de uma espécie de “pornografia moral” que separa aquilo que exigem daquilo que dão que, quando reparamos, confundem-nos e condicionam e paralisam os nossos “porquês”. Como se aquilo que sentimos nelas e aquilo que elas acham que são, aos nossos olhos, não pudesse senão ser a mesma coisa.

Há uma espécie de “mal olhado” na relação entre as pessoas; muitas vezes. E não, não é um resquício australopiteco que nos ficou. É mesmo esta sensação de sermos mal olhados. Que persiste e persiste em muitas relações. O que é mau, de verdade, é que – seja nas relações mais próximas, como com os pais e, até, com os filhos, ou no trabalho, claro – o que temos de bom fique tão contaminado pela maldade das pequenas coisas que, quando damos por ela, estamos vivos; sim. Todos os dias um pouco mais velhos; pois. Assustados com isso, um ror de vezes. Mas consentindo “morrer”. Como se não pudéssemos pôr garra e gana nas dores. E, de verdade em verdade, aceitar que se fica mais velho; mas mais vivo. Todos os dias.

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