Uma das lutas mais árduas da Família Cavaco é a mãe e o pai tentarem convencer os filhos de que o “Seinfeld”, no seu humor aparentemente mais ingénuo, não tem de se envergonhar do “The Office”. Esta não é uma discussão qualquer porque o que está em causa é a salvação dos nossos miúdos: eles ainda não admitem mas, ao terem dificuldades com um humor que não se baseia no que é constrangedor nas pequenas circunstância do dia-a-dia (o “cringe”, como agora se diz no inglês original), é com a própria alma deles que se embaraçam. Sim, tem uma certa piada rirmos dos absurdos corriqueiros mas, cuidado!, não vás tu viver uma vida de fantasma para os evitares.

Como é que chegámos ao ponto de termos filhos que se envergonham tanto com tão pouco ou, novamente no inglês original que hoje se usa, hiper-sensíveis ao awkward? O livro “The Coddling of the American Mind”, por exemplo, ajuda a compreender isto tratando do novo fenómeno de ansiedade na juventude e de como uma política de querer fazer a miudagem sentir-se sempre segura piora tudo. Os autores, Jonathan Haidt e Greg Lukianoff, escrevem que “a crise de saúde mental” que alastra na iGeneration é em grande parte alimentada pelos telemóveis e pela educação paranóica que nós, paizinhos extremosos damos (e quero em breve escrever sobre a nossa obsessão por “saúde mental” mas não dá agora).

Nasce então uma tese curiosa desta educação de pais em pânico a crianças em coletes salva-vidas. Globaliza-se o pavor do constrangimento social precisamente na geração que mais globalmente socializa. Os nossos filhos, ao poderem ter milhares de ligações online, impensáveis para nós no passado, desaprendem a ligação normal com alguém fora da rede. Quem é que ainda não notou que a nossa descendência chega à maioridade tantas vezes incapaz, por exemplo, de articular um diálogo com um desconhecido? Quanto mais se explora com naturalidade o convívio não-físico, mais se evita o físico — daí a tal hiper-sensibilidade com o constrangimento social, o cringe, o awkward. O amor que a juventude tem ao cringe é, paradoxalmente, o seu terror ao convívio sem as saídas de emergência a que a internet os habituou.

Convívio implica constrangimento. Não é possível ter o melhor das pessoas sem correr o risco de apanhar com o pior delas. Esta ambivalência tem caracterizado o relacionamento entre as pessoas desde que elas existem. Tanto assim é que, por exemplo, podemos sentir-nos constrangidos quando, convivendo com alguém, algo corre excepcionalmente bem ou excepcionalmente mal. Tanto um elogio como uma censura pode deixar-nos embaraçados. Ficar sem saber o que fazer é a condição natural de quem lida com uma existência que não pode ser protegida por um guião prévio. Como diziam os antigos, “é a vida” como um conselho de que é melhor ir a ela do que tentar evitá-la. Quando tratamos a vida dos nossos miúdos como um bicho doméstico que amansamos, eles de qualquer pequena mordida esperarão a morte.

Os cristãos lidam com tudo isto com unhas e dentes mesmo e é por isso que a encarnação é central. Até vivermos em carne e osso, não vivemos. Se Deus, que criou as pessoas quis tornar-se numa para lidar com elas, como é que nós, pessoas, poderemos querer lidar uns com os outros armados em deuses? Esta geração pode até ser menos religiosa mas nunca foi tão literalmente metafísica. Qualquer desmaterialização do convívio se torna necessariamente uma espécie de descristianização da sociedade. Nessa medida, o cringe é uma vitória do gnosticismo e não é casual que ele triunfe numa época derrotada na compreensão do que somos também a partir dos corpos que temos.

O monopólio do cringe sobre as gargalhadas dos nossos filhos, tendo a sua piada, tem a sua catástrofe: também representa uma perda de familiaridade com tudo aquilo que naturalmente acontece quando pessoas, de corpo real, se encontram. De certo modo, estamos a rir mais uns dos outros para evitar rir uns com os outros—e não saber estar fisicamente com o outro é perder a oportunidade da piada mais brilhante de todas que é aquela acerca de mim. O excesso de cringe é uma solidão confortável que nos impede de saber rir de nós próprios, desajeitados nos nossos corpos. As gargalhadas até podem aumentar mas o humor, esse, perde-se (que, não estranhamente, também pode ser entendido como o verdadeiro estado do nosso espírito).

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