1. Perante a feliz plateia em que se transformou Portugal e com os portugueses fluidamente despreocupados como bem se nota, devo ser eu que estou enganada por não cantar a felicidade assente em “cimento armado”. Qualquer interlocutor, se for bem-educado, boceja com as minhas discordâncias, se for praticante da má fé, mente e depois, propaga e amplia a mentira. Pessoas como eu poluem o ambiente optimista vigente. As pessoas como eles, os felizes, estão tão instalados nas suas actuais circunstâncias (reencontro com a volúpia consumista, crédito amigo, a vida é bela, Marcelo é porreiro, já não há greves, que é que interessa o endividamento) que gente como eu não é convocada: fica no banco.

2. Pessoas assim enjoam o primeiro-ministro. São “invejosas”, exigem-lhe “nervos de aço”. É natural. Deve dar um trabalhão fazer passar a direita, aos olhos do país, como um grupo menor de maltrapilhos, de passado duvidoso e com má folha de serviços. Para isso adultera-se, anula-se e manipula-se tudo o que ela fez e disse, mentindo sobre o passado recente e revendo a história. Não pode restar pedra sobre pedra, nem sequer ficar alguma coisa guardada nas memórias. Está em curso a anulação de uma parte do país, com recurso a um muito surpreendente exercício do poder político. E a caminho, está, não um assalto televisivo aos castelos, mas a conquista real do poder. Todo.

(Será que agora, atingidos os “milagrosos” 2,1% do défice se sentem “autorizados” a concretizar aquilo que sempre esteve afinal nas suas intenções, o assalto ao poder?)

Activou-se uma mão de ferro cujos dedos, poderosamente tentaculares vão avançando, com implacabilidade até – não se duvide – ser preciso. Exagero? Olhe -se o tom: seria de esperar tamanha estima pela forma de violência em uso? Nos propósitos, nos modos, nos processos? No insulto pessoal, no acinte do verbo, no abuso de certos comportamentos que observamos, do parlamento ás televisões? E repare-se no ambiente – que envergonharia qualquer democracia civilizada – onde se nega qualquer verdade se ela não for oportuna ou conveniente e onde a manipulação, a armadilha, a inverdade, se servem prontas a comer.

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Haverá melhor retrato e espelho mais fiel da avançada da mão?

Se juntarmos a isto – e como também me fez notar um arguto observador – que “pela primeira vez a esquerda que está no governo do país é a mesma da rua”, talvez se abram algumas portas por onde saiam algumas interrogações.

3. Evoquei o tom e o ambiente ou melhor, esta espécie de extraordinária “forma” antidemocrática de agir sobre o ar do país. Mas… e os factos? Cercam-se instituições independentes, atacam-se outras, permite-se que rancores pessoais interfiram na governação, que a vingança tenha um papel nas escolhas para o país. E mobila-se a pátria com disponíveis, concordantes e felizes.

A discordância, que deveria ser um normal instrumento de valorização da democracia no debate ideológico – transformou-se agora no assassínio político, profissional ou de caracter de outrem. Passaram a ser obrigatórios e vejam-se alguns desses factos:

  • o raivoso ataque ao governador do Banco de Portugal, tão concertado que quase nos comove o aplicado trabalho de casa da geringonça – um dia dispara um, no dia seguinte ataca o outro, a seguir insulta o terceiro;
  • o desprezo usado para com Teodora Cardoso… até um destes dias a esquerda concluir que o melhor é acabar de vez com a liderança da dr. Teodora que ousa reescrever as ficções da esquerda sobre os seus sucessos aritméticos;
  • a sede de humilhação de Paulo Núncio, útil vilão de uma história de tal modo desonestamente desenterrada e depois mal contada pela governação & adeptos que os óbvios erros de Núncio conseguiram a quase proeza de nos parecer menores ao pé dos meios usados em mais um massacre da direita. Claro que era preciso que alguém nos distraísse da nociva actuação do Governo na Caixa mas que a semana anterior foi fértil para a mão da geringonça, foi: a mão avançou mais. ( (e com que desenvoltura)

4. Bem a propósito destas e outras, digamos, anomalias comportamentais, um leitor amável enviou-me um comentário de Alain Finkielkraut, feito pelo filósofo francês num diálogo mantido em livro com Peter Sloterdijk (Les Battements du Monde, Fayard)

Vem a calhar: “La mentalité de la gauche contemporaine me semble marquée par une inclinaison pour laquelle je propose le terme d’auto-amnistie. La gauche contemporaine est la partie de la société ayant le privilège de se pardonner ses propres erreurs.(…) Tout est pardonné, selon elle, à ceux qui ont la bonne volonté de changer le monde. Tout est permis à ceux qui sont la conscience. La gauche a voté absent pour empêcher un procès contre tout ce qui a été commis au nom de ses propres valeurs au cours du XX siècle – et ce n’est pas négligeable. Tout se passe comme si les ” crimes de gauche ” étaient des actes sans auteurs.”

É isso: A esquerda tudo se permite a si mesma e tudo se perdoa a si própria.

5. Mesmo distante de plateaux, sondagens e fóruns onde se exalta a geringonça, se exulta com Belém e se festeja o ar do tempo, não me deu jeito calar este insalubre estado de coisas nem, ainda menos, desistir de o lamentar. Insisto: não somos muitos a fazê-lo. Mas um dia destes talvez eu esteja menos só na empreitada.

PS: Como compreender senão pelo avanço da mão da geringonça que Jaime Nogueira Pinto tenho sido impedido pela direcção de uma instituição de ensino superior para proferir uma conferência para que tinha sido convidado por alunos da própria casa (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas)? De que é que a nobre direcção teve medo? Do politicamente correcto (que o conferencista desconvidado não é) ou sentiu medo físico das ameaças dos bloquistas da geringonça? A escolha entre um medo e outro medo é terrível: qualquer deles desgraça um director universitário. Mas depois não se queixem das consequências do precedente agora aberto com esta miserável cedência.