O dia cujo bicentenário hoje se comemora – 24 de Agosto de 1820 – só pouco mais do que simbolicamente poderá ser considerado o da nossa revolução liberal, porque o que nele realmente aconteceu foi um golpe de Estado protagonizado por dois grupos completamente distintos nas intenções e finalidades, sendo que um deles, o militar, desconhecia, quase por inteiro, a existência do outro, o político, e este em quase nada se identificava com o primeiro.

Efetivamente, o pronunciamento militar que se inicia na madrugada desse dia, na cidade do Porto, no então Campo de St. Ovídeo, hoje Praça da República, foi consequência direta da profunda degradação social e moral em que se encontrava o país, desde há muito sem rei nem corte, ausentes que estavam no Brasil, para onde tinham partido no já longínquo dia 29 de Novembro de 1807, em fuga estrategicamente acordada com a Inglaterra.

O que nessa altura se temia era que Napoleão Bonaparte, vencendo uma incursão militar para a qual não tínhamos força de resistência capaz, aprisionasse a Rainha (D. Maria I) e o Príncipe-Regente D. João (futuro D. João VI), e colocasse no seu lugar, como titular da coroa portuguesa, um familiar ou general seu, pondo termo à soberania nacional. Nessa medida, a jogada estratégica planeada com a Inglaterra, que foi objeto de uma convenção secretamente assinada entre os dois países no dia 20 do mesmo mês de Novembro, evitou que isso acontecesse e manteve a ficção de que o Reino de Portugal permanecia soberano, embora com capital, rei e corte já não em Lisboa, mas no Rio de Janeiro, para todos os efeitos então ainda solo português.

Todavia, pelo menos desde que Napoleão fora derrotado e aprisionado na ilha de Elba, em 1814, a permanência de D. João VI no Brasil já não mais se justificava. Ela servia exclusivamente os interesses da Inglaterra, que mandava em Portugal através do marechal William Carr Beresford, chefe do Exército Português e, de facto, do nosso governo, e beneficiava, desde o Tratado de Comércio e Navegação, que nos fora imposto por essa potência em 1810 (19 de Fevereiro), de condições privilegiadas no comércio com o Brasil. Mas a dominante e predadora presença inglesa amesquinhava profundamente o orgulho nacional, que se sentia abandonado pelo seu rei, e muito principalmente o dos oficiais portugueses, que se viam preteridos na ascensão na hierarquia militar pelos soldados ingleses, que ascendiam aos cargos que lhes davam renda e prestígio em desfavor dos nossos, que se quedavam pelas patentes e posições inferiores.

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O retorno de D. João VI ao território português europeu foi, por conseguinte, a causa comum a todos os envolvidos no movimento político e militar do dia 24 de Agosto de 1820. Havia, por esses dias, uma unanimidade nacional para que o regresso do rei e da capital a Lisboa se fizesse o mais rapidamente possível. Por razões patrióticas comuns a todos, inquestionavelmente, mas também por motivos corporativos, para os militares, e por causas de ordem política, para os civilistas.

Em que consistiam, então, estes dois grupos que conspiraram para levar a cabo a Revolução do dia 24 de Agosto de 1820, quem os integrava e o que pretendiam?

O grupo político ou civilista, onde principia a ideia do golpe, era composto pelos homens do Sinédrio, uma associação secreta criada a partir de uma conversa tida na noite de 27 de Dezembro de 1817, na Foz do Douro, entre dois homens de leis: o juiz do Tribunal da Relação do Porto Manuel Fernandes Tomás e o juiz do Tribunal dos Órfãos da mesma cidade José da Silva Carvalho. Estes dois homens, o primeiro nascido na Figueira da Foz e o outro em Santa Comba Dão, não eram naturais do Porto, embora lá residissem por motivos profissionais. Ambos eram liberais influenciados pelas «Luzes» que vinham de França e da Inglaterra, e os dois partilhavam a ideia de que o poder tinha origem na Nação e deveria ser conformado e limitado por uma Constituição e pela lei. Nessa conversa, relatada pelo segundo deles num texto seu sobre a história da revolução (o Memurandum sobre os acontecimentos do dia 24 de Agosto de 1820), manifestaram preocupação com a situação em que se encontrava o país, acordando que seria necessário fazer-se algo para mudar o curso das coisas. Dias mais tarde, a 22 de Janeiro do ano seguinte, em visita a José Ferreira Borges, também ele homem de leis, mas advogado, na cidade Invicta, acabariam por concordar em constituir uma organização secreta que acompanhasse o estado geral do país e o preparasse para o futuro. Esse grupo inicial juntaria, até às antevésperas do dia da revolução, um total de treze elementos, que mantiveram a organização sempre oculta, necessidade mais do que compreensível, a avaliar pela ferocidade com que Beresford sentenciara à morte por enforcamento os doze participantes numa conjura militar ocorrida poucos meses antes, no ano de 1817, supostamente liderada pelo prestigiado oficial português general Gomes Freire de Andrade.

O segundo grupo, que era onde residia a força militar necessária ao sucesso do golpe, era composto por oficiais e militares de carreira, destacando-se os nomes do brigadeiro António da Silveira Pinto da Fonseca e do coronel Sebastião Drago Valente Brito Cabreira, respetivamente futuros presidente e vice-presidente da Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, o primeiro governo provisório saído da revolução. Sintomaticamente, ambos desconheciam a existência do Sinédrio e dos seus planos, até eles se terem revelado já depois do dia 24 de Agosto. Também o coronel Bernardo Correia de Castro e Sepúlveda desempenhou um papel importante nas operações do dia da revolução e nas dos dias seguintes, sendo o único militar dos que participaram na chefia das operações que pertenceu ao Sinédrio, ainda que o tenha integrado somente a 19 de Agosto, escassos cinco dias antes da revolução ter eclodido. Também por aqui se pode perceber que, apesar de compreenderem a necessidade de terem, no seu meio, um militar operacional de patente elevada, os homens do Sinédrio não confiavam nas chefias do nosso exército.

O que distinguia politicamente estes homens e os seus dois grupos era imenso, mas, principalmente, a divergência assentava na resposta à questão que, aliás, dividiria todo o século XIX português: o poder pertence a quem, à nação ou ao rei? O grupo do Sinédrio, onde residia o espírito liberal e constitucionalista da revolução, perfilhava as teses iluministas do contrato social gerador da ordem política, pelo qual os indivíduos abandonavam o “estado de natureza” e firmavam a sociedade política com regras gerais e abstratas estabelecidas nas novas constituições. Os sentimentos políticos que os animavam estavam, efetivamente, muito próximos da res publica, apesar de todos os envolvidos protestarem o seu amor à monarquia e à Casa de Bragança, corporizada na figura pacata de D. João VI, o «nosso amado soberano», como se pode ler em vários documentos dos revoltosos. Fernandes Tomás, contudo, nunca foi equívoco a respeito da doutrina do vintismo, que ele fundava nas antigas tradições políticas nacionais pré-absolutistas, considerando que o rei mais não era do que um delegado da nação e que era nesta que residia o Summum imperium. Num discurso feito às Cortes Constituintes sobre os direitos dinásticos da Casa de Bragança, ele afirmará que «quando esta dinastia não cumprir com as condições debaixo das quais é eleita para governar, então a nação, reassumindo seus imprescritíveis direitos, tem autoridade de a tirar do governo, e pôr à testa delle quem bem lhe apetecer». Encontramos aqui, no pensamento de Tomás e na ideologia do vintismo, as teses sobre a origem popular do poder, que são mais antigas do que se muitas vezes se julga, de tal modo que é o próprio líder do Sinédrio quem as evoca como tendo sido «os princípios dos nossos maiores». Mas elas não eram, decididamente, do agrado fação militar, que, apesar de também não se satisfazer com o absolutismo pombalino do século anterior, não prescindia do princípio monárquico da origem da soberania, rejeitando a ideia de que a revolução pudesse servir para impor ao rei uma Constituição que lhe limitasse o seu poder.

Esta foi a linha de fratura entre os dois partidos, que fez com que a Revolução do 24 de Agosto não se consumasse, de imediato, na revolução nacional e liberal em que se viria, mais tarde, a transformar. Essas divergências eram já sentidas muito antes do próprio golpe, tendo sido evidentes em vários momentos, por exemplo, quando Silveira recusa o Manifesto aos Portugueses redigido por Tomás, que deveria ser a proclamação sobre os fins e objetivos da revolução, se esta triunfasse. Para salvar as aparências e manter os planos, teve essa empreitada de ser entregue a Ferreira Borges, que pertencia à alta burguesia portuense e era mais benquisto pelos militares.

Nas semanas que se seguiram a esse dia do final de Agosto, a revolução foi consolidando posições no Norte e no Centro do país, até ter chegado, a 15 de Setembro, à cidade de Lisboa, onde eclodiu um pronunciamento militar semelhante ao do Porto. Desse novo golpe resultaria também uma junta governativa própria, que se viria a fundir com a do Porto a 28 de Setembro, num governo nacional ainda presidido por António da Silveira (Junta Provisional do Governo Supremo do Reino). Todavia, as tensões entre os dois grupos agravaram-se radicalmente, ao ponto dos militares, numa esdrúxula coligação oportunista entre radicais «exaltados» e ultraconservadores, terem promovido um golpe palaciano pelo qual afastaram Fernandes Tomás e os homens do Sinédrio. O golpe, que passou à história com o nome de Martinhada, por ter eclodido no dia 11 de Novembro, não duraria uma semana sequer, já que a 17 de Novembro seguinte Fernandes Tomás consegue inverter as posições relativas dos dois grupos, regressando com os seus ao governo e afastando os militares mais conservadores, alguns deles condenados ao desterro.

Só a partir daí a Revolução de 24 de Agosto ganhará a sua verdadeira dimensão política nacional que a perpetuaria, e que se consubstancia na adopção do liberalismo político e na feitura da primeira Constituição Portuguesa, aprovada a 22 de Novembro de 1822, em Cortes Constituintes eleitas. Será nesse importante documento, com o qual se abre as portas do nosso futuro Estado de direito, que se consumará a doutrina do vintismo. Foi um texto muito arrojado para o tempo, que colocava a soberania nacional no epicentro do novo regime que se pretendia instituir. Como não poderia deixar de ser, tamanho atrevimento provocou uma reação virulenta nos setores mais conservadores da sociedade portuguesa e condenou o nosso primeiro liberalismo a uma vida efémera. Hoje, a Constituição de 1822 seria um texto exemplar para qualquer monarquia constitucional europeia. Na altura, levantou boa parte do país contra ela, ao ponto dos próprios militares que chefiaram as operações do dia 24 de Agosto se terem bandeado para o lado de D. João VI, primeiro, e, mais tarde, muitos deles para o de D. Miguel, pondo termo ao seu primeiro período de vigência no mês Junho de 1823, após o golpe miguelista da Vilafrancada (27 de Maio). Sobre esse texto fundador do nosso Liberalismo e do nosso Estado de direito, ainda que de vida breve, sentenciou lapidarmente Trindade Coelho: «era bom, mas era demais para o tempo, no nosso país». Tinha razão.