A eventual entrada dos partidos da extrema esquerda no chamado “arco da governação” terá uma consequência inevitável: têm que rasgar os seus programas políticos ou, no mínimo, deixá-los no congelador de onde só os poderão retirar depois de regressarem à oposição assumida.

Não admira. Os programas do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista não são programas de governo. São programas de oposição e de protesto porque foi com essa perspectiva que foram escritos. Não foram feitos, na sua essência concreta, para serem aplicados porque são uma alternativa impraticável. Todos, a começar pelos dirigentes comunistas e bloquistas, sabem disso há muito tempo. Mas nada como o embate com a realidade para o confirmar. É esse o embate a que temos assistido nos últimos dias.

Já ouvimos Catarina Martins considerar “demagógica” a exigência do aumento imediato do salário mínimo para 600 euros. Mas é isso que está escrito no manifesto que o BE levou a eleições.

O exemplo mais simbólico está nos termos do que terá sido acordado entre o PS e o BE, que prevê um aumento das pensões até 628 euros em 0,3%. Imagine-se a indignação em torno das “pensões de miséria” se esse mesmo aumento de 1,80 euros por mês fosse proposto pela direita.

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Outro caso: a reposição dos salários da função pública para os níveis pré-troika deverá ser feito ao longo de 2016 e não no primeiro dia do ano, como o BE também pretendia.

Também a sobretaxa de IRS deverá ser eliminada em dois anos, como previa o PS no seu programa, mas contrariando o BE que a queria extinta de imediato.

Isto são algumas das medidas conhecidas das negociações entre socialistas e bloquistas.

Por dedução lógica, nestas matérias concretas não poderá ser acordada coisa diferente com o PCP.

Por isso, será interessante perceber nos próximos dias o que vai acontecer a algumas das mais emblemáticas “medidas urgentes” que os comunistas têm no seu programa eleitoral: “Aumento do Salário Mínimo Nacional para 600 euros no inicio de 2016”; “ Reposição imediata e integral de vencimentos, subsídios, pensões e complementos retirados aos trabalhadores da Administração Pública e do Sector Empresarial do Estado”; e “Aumento real do valor das pensões e reformas”.

Já não falo sequer das medidas estratégicas que faziam o esqueleto económico das propostas do PCP e do BE, que passavam por um perdão da dívida – o Bloco apontava mesmo uma redução do valor nominal da dívida pública de 60%, que financiaria o grosso do seu programa de aumento de despesa pública -, pela nacionalização da banca e de sectores estratégicos e pela eventual saída do euro.

Também o PS, para acomodar os cadernos de encargos dos seus parceiros de negociação, está a abdicar de duas medidas que eram o alfa e o ómega das suas propostas: a redução da TSU, que no seu modelo económico daria um empurrão ao consumo privado e, com ele, ao crescimento da economia, e o mecanismo conciliatório no mercado laboral.

Pois é. A tabuada é a mesma para a direita e para a esquerda. Cumprir os limites do défice, como deve ser e o país se comprometeu, obriga a tomar opções duras. Não se pode distribuir o dinheiro que não se tem e a riqueza que não se cria. Durante muito tempo teremos que continuar a ser governados sob o signo do mal menor. E isso significa que a austeridade terá que continuar, embora em doses cada vez mais reduzidas como, de resto, todas as candidaturas prometiam a ritmos diferenciados. E mesmo assim é preciso que tudo corra bem, hipótese cada vez mais longínqua.

O grande objectivo que os partidos da esquerda podem alcançar se vierem a ser governo não é uma mudança radical de política: é o afastamento da direita do governo. O resto há-de continuar, porque não há milagres. E não tardará até ouvirmos que a austeridade de esquerda é muito melhor do que a austeridade de direita. E que um aumento de 1,8 euros nas pensões feito por um governo de esquerda é uma política social enquanto um aumento de 1,8 euros nas pensões feito por um governo de direita é uma política de miséria e empobrecimento. Em política a aritmética é uma ciência muito pouco exacta, como sabemos.

Jornalista, pauloferreira1967@gmail.com