Em 2016, era então Secretária de Estado da Educação, Alexandra Leitão explicou que, apesar de grande paladina da escola pública, tinha as filhas na Escola Alemã, por causa do currículo internacional. Na altura, disse: “A opção pela Escola Alemã tem a ver com a opção por um currículo internacional. Para mim era importante que elas tivessem uma educação com duas línguas que funcionem quase como maternas, digamos assim. Se assim não fosse, andariam obviamente numa escola pública.” Obviamente.

Já Ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública, depois dos gritos com que mimoseou funcionários de uma Loja do Cidadão, percebe-se que não foi por causa do tal currículo internacional. (Até porque, com o estado do ensino, uma aluna que saia da escola pública tem grandes hipóteses de também vir a ter experiência profissional no estrangeiro, na medida em que é forçada a emigrar. Provavelmente, até acabam ambas a trabalhar na mesma empresa. Cruzam-se ao fim do dia, quando a filha de Alexandra Leitão deixa o escritório e a ex-aluna da escola pública chega para o limpar). Não, não é pelo currículo internacional. Alexandra Leitão pôs as filhas na Escola Alemã porque se identifica com o rigor marcial teutónico. Deve adorar ordens berradas em alemão. E, de facto, nada diz “eficiência” como um “Schnell!” ou um “Achtung!” urrados ao estilo de um coronel das SS à frente dos seus Panzer. O que sucedeu foi que a Ministra se imaginou em Munique a  renovar o seu Personalausweis der Bundesrepublik Deutschland num Bürgeramt (peço desculpa se estiver incorrecto, mas, uma vez que andei na escola pública, tive de recorrer ao Google) e considerou o mau serviço inaceitável. Irada, gritou. Ou era isso, ou anexava a Áustria.

Segundo o comunicado do ministério, por volta das 14 horas de Sábado, dia 4, a ministra foi a uma Loja do Cidadão e, ao aperceber-se que um utente estava há 10 horas à espera, deu ordens para que fosse logo atendido, “até porque havia poucas pessoas a aguardar e, por isso, não haveria motivo para se manter o cidadão mais tempo à espera”.

A versão do Sindicato dos Trabalhadores dos Registos e Notariado é um bocadinho diferente, na medida em que, corroborando mais ou menos os factos, acrescenta os decibéis a que as ordens foram dadas, assim como a brusquidão dos modos. Na prática, o sindicato insinua que a ministra acha que quem atende em serviços públicos o faz atrás de um guinché, que é o guiché para onde se pode guinchar à vontade. Só faltou dizer que, além da reprimenda, ainda vendeu uma cabeça de garoupa e três quilos de fanecas, ó freguês.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Julgo sermos capazes, a bem da harmonia, de chegar a uma versão conjunta do incidente. É possível que a ministra tenha gritado, sim, mas não por falta de educação. Reparem: eram 14 horas e o utente estava à espera há 10 horas, o que quer dizer que a Loja estaria aberta desde as quatro da manhã. Significa isso que o funcionário devia estar acordado desde as três. A ministra há-de ter pensado: “Olha, este subalterno está podre de sono, coitado! Já cabeceou duas ou três vezes. Vou despertá-lo suavemente, levantando um pouco a voz.”

Ou foi isso ou então não faz sentido Alexandra Leitão ter a pasta ministerial da Modernização do Estado, uma vez que há poucas coisas mais arcaicas do que gritar ordens. Gritar com funcionários foi moderno quando os egípcios construíram as pirâmides. Caso contrário, faz tanto sentido termos uma Ministra da Modernização do Estado como a Suíça ter uma Ministra do Mar.

(Entretanto, compreende-se agora a intransigência de Alexandra Leitão na defesa da ADSE. Com os maus-tratos a que são sujeitos pela tutela, os funcionários públicos devem fartar-se de gastar dinheiro em cuidados médicos. Só em consultas de psiquiatria, devem ser balúrdios. A sorte do trabalhador injuriado é o enxovalho ter ocorrido durante o fim-de-semana e a ministra não ter consigo a chibata oficial).

Ainda de acordo com a nota do Ministério, “a ministra demonstrou a sua preocupação com a necessidade de responder aos cidadãos em tempo razoável, o que não estava a acontecer naquele caso em particular”. É esta a diferença entre socialismo e capitalismo. Enquanto o patrão explorador, com a voz grossa de quem bebe cognac e fuma charutos, grita com o funcionário estafado que serve mal o cliente, para proteger o lucro, o líder socialista, com a voz grossa de milhões de compatriotas em uníssono, adverte o funcionário sabotador que serve mal o cidadão, para proteger a sociedade e o bem comum. No fundo, para proteger o próprio funcionário. Que, em princípio, nem agradeceu a descompostura à ministra, o ordinário.

Quem também ficou com as orelhas a arder foi Eduardo Cabrita. Aqui está uma colega de Governo preocupada em que os Portugueses obtenham respostas em tempo razoável. Está visto que é Alexandra Leitão quem, de uma vez por todas, vai descobrir a que velocidade circulava o carro de Eduardo Cabrita quando atropelou um trabalhador na A6. É que já passou mais que o tempo razoável para ter uma resposta. Imagino, no próximo Conselho de Ministros, o diálogo digno de curral – e não só por causa do apelido dos protagonistas:

Ó Cabrita, diz lá, pá! A quanto é que ias? As pessoas estão há que tempos à espera, pá! Ias a 200, não ias?

– Não gritas comigo, ó Xana! Olha que eu não tenho medo de ti. Não sou um desses borra-botas das repartições. Vê lá se não recebes uma visita de um inspector do SEF.

– Eu borrifo nisso. Pressionaste o motorista, não foi? Eu conheço-te, vinhas a babar por aqueles rissóis gordurosos das áreas de serviço. Responde, badocha!

Vamos ver se o ministro aguenta a pressão o suficiente para que entretanto o inquérito consiga culpar a vítima, desresponsabilizando o excesso de velocidade. Pode ser que, se arranjarem maneira de acusar de negligência o trabalhador, ainda vejamos a ministra deslocar-se a um Sábado ao cemitério só para gritar com o falecido. Afinal, não suporta incompetência.