Actualmente, a 30/06/2023, pelas 01h26 da madrugada em revisões e pesquisas bibliográficas fora deste tema e a título de crescimento pessoal, enquanto médico de família, responsável por gerir expectativas de uma lista de utentes, com idade avançada por sinal, tenho medo de prescrever um exame endoscópico. Mas antes, um prelúdio.
No Domingo passado, assisti a uma composição teatral que retratou de forma exímia a ideia de que o paraíso não é aquela imagem ou paisagem finita, de tranquilidade definitiva, mas sim, um constante arranjo de crítica e alarido individuais construído ao sabor de cada um. Esse travo escandinavo, em Suécia, de Pedro Mexia, senti-o também, levemente, muito ao longe, na mentalidade dos holandeses num estágio profissional prévio. Nessa altura, apurei nas consultas um maior distanciamento social, poder de reflexão populacional e realismo nas recomendações discutidas por médico e doente. Deste modo, imbuído neste espírito de crítica venho satirizar um aspecto técnico-científico da Medicina actual que, para uma franja considerável da população, ainda é revista como um paraíso a vários níveis. Além disso, devo dizer que cumprimentei nesse mesmo Domingo, no São João, um dos meus heróis – Ricardo Araújo Pereira. Já agora, por falar em génio, este não tinha barbicha, não era gorducho, nem azulado, mas sim esticado, musculado e moreninho, portanto, deve ter escapado de uma lâmpada mais estreitinha. Este instante de contacto paranormal de simpatia impeliu-me a ultrapassar o receio do dueto comédia e Medicina e fez-me recordar William Osler que nos dizia que na vida rotineira a tragédia já é suficientemente assídua pelo que um humor aguçado face às incongruências e absurdices dos hábitos perenes dos doentes é benéfico.
Voltemos então a este tópico visceral. Está instalada, não sei onde inicialmente fabricada, mas já com raízes fortes, a moda de que se o faz por cima também é aconselhável fazer por baixo e vice-versa. Este compasso gastrointestinal é bastante aceitável e tolerável entre alguns utentes portugueses, donos de um latino sal, pró-examinador, contudo, pode fazer inimigos pelo caminho. Comecemos pelo que raramente é ponderado quando se vai ao sábado de manhã com uma requisição na mão, ao vento, agendar ou até, se sortudo, realizar, desde logo, um exame (meio complementar de diagnóstico e tratamento) – o vulgar e esquecido risco. Pode aparentar esquisitice minha esta questão do risco inerente a um exame, principalmente, quando a nossa população de matriz judaico-cristão o coloca num pedestal tremendamente elevado, mas existe efectivamente. Ora vejamos:
- Colonoscopia de rastreio: internamento 1.98/1000, perfuração 0.5/1000, hemorragia 2.6/1000, morte 7/100000;
- Endoscopia digestiva alta: perfuração 3/10000.
Para além desta cegueira transversal ao risco e fé inabalável nos exames de teor divinal como resposta confirmatória 100% firme e segura, até muito alicerçada num provérbio que é um matreiro veículo de engano “mais vale prevenir que remediar” (nem sempre senhoras, nem sempre senhores), não devemos fechar os olhos à indicação.
Utente: “Como assim indicação? Para os Óscares?”
Euzinho: “Não, não Sr. Utente. Habitualmente, existem recomendações nacionais e internacionais sobre a prescrição de determinados exames, tecidas por sociedades médicas, ou seja, as situações no dia a dia clínico em que esses exames são estudados e aprovados pela ciência para tal.”
E claramente, tanto a prescrição da endoscopia digestiva alta como a colonoscopia, têm indicações precisas e que devem ser discutidas com o utente quando estes lhe são propostos. Porém, sabemos que o protecionismo e o paternalismo do médico ainda é usualmenre sinónimo de salvação pelo que naquele contacto de segundos com o utente, sem avaliação da história clínica, familiar e exame objectivo, ser-lhe logo carimbada a mui nobre hipótese de fazer cima-baixo ou baixo-cima, é bem visto. No que ainda concerne esta coisa chata da indicação e, excluindo múltiplas variáveis e factores mais intrincados, falemos de um fantástico apoio matemático que admiro relevar – a probabilidade pré-teste.
Imaginemos que temos à nossa frente dois utentes, esguios, de aspecto bem cuidado, com bons hábitos alimentares, estrangeiros, com queixa de diarreia de começo recente (5 dias), moderada (2-3 vezes por dia) e sem outros sintomas ou sinais de alerta na consulta. O primeiro tem 82 anos e história de 2 pólipos de alto risco para cancro removidos há 8 anos, e o segundo tem 15 anos e teve uma infecção respiratória das vias aéreas superiores há 4 dias. A probabilidade pré-teste, ou seja, antes de executarmos o exame, de diagnóstico de um cancro do intestino em ambos os utentes é diferente, mais alta no primeiro caso e baixíssima no segundo. Portanto, se a possibilidade de cancro do intestino é rara no segundo utente a prescrição da colonoscopia é possivelmente uma intervenção com maior aporte de risco que benefício e a balança tende para ausência de contributo interessante na resolução da queixa do jovem.
Utente: “Então porque está tão indignado sôtôr?”
Euzinho: “Porque, hoje em dia, se prescrevo a um utente uma colonoscopia algures num recanto do SNS, sai a encomenda de fazer também uma endoscopia digestiva alta, e o mesmo se verifica se reiniciarmos esta pequena história de amor por cima. Surpresa? Acabamos em baixo.”
Utente: “Que estranho. Vai-se lá receber um tubo, custoso, moroso, indigesto, numa cavidade já acordada e eles sugerem outra assim tão facilmente?”
Euzinho: “Pois saiba que a sedação para a realização de uma colonoscopia é comparticipada pelo SNS, mas o cenário da pobre endoscopia digestiva alta não sofre desta esbelta regalia de país riquíssimo. Deste modo, o registo da encomenda por uma via ou outra, mas que é sempre verbal, cai sempre a promoção do já famosíssimo pack 2.0: “durma uma e leve duas”.
Utente: “Realmente, é uma boa oportunidade para fechar os olhos. Isto irrita-o, certo?”
Euzinho: “Evidentemente. Aliás evidência, prova científica, é o que se transpira em demasia e não se palpa nestas colaborações gastro-colo-rectais. Primeiro, irrita-me a forma camaleónica, fugaz, que o utente personifica na transição mecânica da delineação de um plano prévio e rigoroso na consulta e que, desrespeitosamente, é desfeito em pó aquando do convite maroto para o pack 2.0. Lá se foi a minha avaliação cuidadosa transformada em dúvida serpenteante por não aderir à modinha 2×1. Segundo, irrita-me o consumo de recursos, já terrivelmente escassos, em termos de consultas, presenciais ou não presenciais, para explicar a um utente que vem pedir satisfações secundárias sobre o pack 2.0, retirando na minha agenda diária disponibilidade para outros problemas, mil, resolver. Terceiro, irrita-me a falta de reconhecimento quanto às temáticas do sobrediagnóstico e prevenção quaternária, sobrepondo-se porventura outras prioridades, e a falha permanente e persistente em comunicar informação clínica relevante (por escrito) quanto à necessidade do pack 2.0 no utente em discussão. Assim sendo, vem tudo na boquinha do utente para ele vociferar em tom exaltado ou às vezes, num pedaço de papel, engelhado, perdido nas calças, que timidamente se revela após 1 minuto de procura profunda. Quarto, pelos conflitos, evitáveis, que são equacionados nestas desavenças de prescrições inadequadas e perigosas e que potencialmente desgastam a relação de continuidade com o seu médico de família.”
Lembrem-se que não existe rastreio organizado do cancro do estômago em Portugal; as situações em que há doenças a serem vigiadas por endoscopia digestiva alta são poucas e os intervalos para repetição da colonoscopia estão definidos, por isso, não adianta antecipar.
Quando lhe piscarem o olho ao pack 2.0, pense duas vezes. Uma em si e outra em mim.