Agora que se fala tanto em alterações climáticas e emergência climática, agora que o programa da nova Comissão Europeia elege o “Pacto Verde Europeu” como peça central da política europeia, talvez valha a pena fazer uma incursão pela “teoria da modernização ecológica” (Mol, Sonnenfeld, Spaargaren, 2009) uma espécie de guarda avançada do capitalismo verde.

A teoria da modernização ecológica (TME) é uma vertente do chamado “capitalismo cognitivo” (Boutang, 2008) para os países desenvolvidos. Ela está em linha com as grandes preocupações ambientais do último quartel do século XX, numa versão mais utilitária de problem-solving. Numa fase inicial, devido ao romantismo radical dos movimentos sociais ambientais, não surpreende que os grandes conceitos da sociologia ambiental tenham uma origem de inspiração neomarxista, ou, então, giram em redor de uma mudança de paradigma como é aquela que se exprime pela rotação do binómio antropocêntrico versus ecocêntrico. Logo de seguida, os grandes acidentes da década de 80 deixam de respeitar países, sistemas e fronteiras e mudam, também, a natureza e a escala dos problemas ambientais. Ao mesmo tempo, entre os debates do Clube de Roma (Relatório Meadows 1972) sobre os limites biofísicos ao crescimento económico e os diversos Relatórios do IPCC sobre Alterações Climáticas ou a grande campanha ambiental de Al Gore denominada “Uma Verdade Inconveniente”, assistimos à internacionalização da questão ambiental e à emergência da “grande noção” de desenvolvimento sustentável, na sequência do Relatório Brundtland de 1987 e as Conferências do Rio de 1992 sobre Ambiente e Desenvolvimento e de Joanesburgo de 2002. Neste percurso, o que acontece à teoria da modernização ecológica?

TME: o modo de olhar para o problema é o problema

Julgamos poder descortinar quatro grandes perspetivas ou grelhas de leitura na evolução da TME:

  • Há, em primeiro lugar, uma escola de pensamento social em matéria ambiental, ao mesmo tempo de carácter teórico e empírico que podemos identificar com os trabalhos académicos da escola alemã de Berlim de Joseph Huber e Martin Janicke e com os trabalhos da escola holandesa de Wageningen dos sociólogos Arthur Mol e Gert Spaargaren, aos quais acrescentamos a escola americana desde Allan Schnaiberg (mais radical) até Fred Buttel (mais modernizador); no início dos anos oitenta, Martin Janicke e Joseph Huber já usavam as expressões “modernização ecológica” e greening the industry; estas escolas detêm, ainda hoje, a “propriedade intelectual” da teoria da modernização ecológica nos seus traços essenciais (Spaargaren, Mol, Buttel, 2000);
  • Há, em segundo lugar, um discurso público e uma politização da questão ambiental que conduz à modernização política,  tal como é elaborado pelo cientista social alemão Martin Hajer, que preparam o contexto favorável ao desenho de novas políticas públicas ambientais e ao surgimento do neocorporatismo alemão e das coligações de interesses que são indispensáveis à modernização pragmática e utilitária da indústria alemã, segundo o princípio geral de que a economia e a ecologia são conciliáveis no quadro das economias capitalistas avançadas;
  • Há, em terceiro lugar, o pragmatismo da corrente gestionária da política industrial face ao qual a ecologia perdeu a sua inocência; a TME é percebida como gestão ambiental, ecologia industrial, ecologia agrária e ecologia urbana, isto é, eco reestruturação, em particular no sector privado. Outra aproximação inclui as políticas públicas que promovem a internalização das externalidades ou custos externos não contabilizados. Porém, o mais interessante desta evolução gestionária e utilitária é que a TME faz emergir uma racionalidade ecológica cada vez mais emancipada da economia e da política. Um mix modernizador de mercado, tecnologia, instituições e teremos a TME, não obstante os neomarxistas nos lembrarem que o capitalismo verde é um embuste que não resolve os grandes problemas ambientais do nosso tempo;
  • Há, em quarto lugar, a globalização da questão ambiental, a emergência da sociedade do risco global e o greening do consumo;  a  geração de 70-80 acreditava nas capacidades do capitalismo liberal para se auto-reformar através de políticas de modernização; hoje, para as gerações mais recentes, com a globalização ambiental e as alterações climáticas, a agenda da modernização ecológica volta a ser mais político-ideológica e muitos conflitos de interesse põem em causa os benefícios ecológicos; por outro lado, com a hiperglobalização e a emergência climática os problemas ambientais deixam de ser um problema de ecologia agrícola, industrial ou urbana para ser um problema de ecologia política e ecologia humana, isto é, de cidadania ambiental.

Em resumo, estas quatro perspetivas da TME descrevem uma evolução que poderia ser, assim, sintetizada:

  • Uma ecologização da teoria social e da sociologia, na linha de uma sociologia ambiental,
  • Uma politização do ambiente, no quadro das políticas de ambiente e justiça ambiental,
  • Uma juridificação dos direitos ambientais, a 4ª geração, depois dos direitos civis, políticos e humanos,
  • Uma socialização dos riscos globais, na linha de uma sociologia do risco global,
  • Uma nova ecologia humana, onde a qualidade dos ecossistemas vai a par com a qualidade do bem-estar humano.

Enquanto a nova disciplina da sociologia ambiental pensa os problemas, a TME resolve os problemas, é a via do problem-solving. A visão da TME é mais pragmática e realista, razão pela qual as questões da ecologia industrial e da ecologia urbana estão mais desenvolvidas no norte da Europa. Todavia, no quadro da global governance e da environmental politics, a TME está, claramente, limitada na sua capacidade para tratar de problem-saving e de risco sistémico; entre o problem-solving e o problem-saving, é aqui que nos encontramos hoje.

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Dez teses sobre a TME

Na sua substância, o essencial da TME pode ser definido, em termos simples, do seguinte modo:

  • Se há problemas derivados do industrialismo então a solução está em mais e melhor industrialismo e não em menos,
  • A ecoeficiência e a racionalização são instrumentos essenciais da reforma da política ambiental, por via do incrementalismo das reformas,
  • As reformas têm um efeito de aprendizagem social sobre os movimentos mais radicais moderando o seu ímpeto radical,
  • O ambiente caminha para uma área autónoma face à economia e á política, estamos perante uma racionalidade própria cada vez mais nítida,
  • A modernização ecológica e a modernização institucional interagem constantemente e contribuem para renovar a relação entre o estado e a sociedade,
  • Através da emancipação da ecologia chegamos à emancipação do individuo, porque o bem-estar dos ecossistemas e o bem-estar humano são as duas faces da mesma moeda.

A partir destes pressupostos podemos construir um decálogo para a teoria da modernização ecológica (Covas e Covas, 2010):

1ª tese: a TME é uma tese acerca da “modernização da modernidade”, que não confunde industrialismo com capitalismo e que se inscreve na grande corrente da modernização reflexiva de Anthony Giddens, na fase tardia do capitalismo quando este ainda acredita, apesar de tudo e dos riscos globais, que tem condições para renovar as disfunções do seu próprio industrialismo; 

2ª tese: a TME é uma tese acerca da economia verde, o greening do sistema, isto é, é uma lógica técnico-instrumental ao serviço da reestruturação ecológica do capitalismo;

3ª tese: a TME é uma tese acerca da transição paradigmática entre o antropocentrismo da sociologia clássica e contemporânea e a emergência do paradigma ecológico onde a sociologia ambiental tem um papel de relevo na definição e delimitação dos problemas agroambientais e ecorurais; esta referência remete-nos para o que poderíamos designar como “a ecologia política da modernização ecológica”, ou, em outros termos, para a ideologia da modernização ecológica;

4ª tese: a TME é uma tese acerca do compromisso entre crescimento económico e proteção da natureza, isto é, a proteção da natureza e a política ambiental como fonte de crescimento económico; esta referência diz-nos que estamos perante um problema clássico de policy-framework face à lógica binária exclusivista de crescimento ou ambiente; desse ponto de vista, a TME é um compromisso histórico, um novo campo de forças ou coligação de grupos de interesse, acerca de um novo policy-style para o desenvolvimento económico e social.

5ª tese: a TME é uma tese acerca da crescente independência da racionalidade ecológica face à racionalidade económica que induz uma forte racionalização em duas direções principais: uma diferenciação estrutural e a emergência de novas áreas de interação entre a economia e a ecologia e a correlativa especialização funcional que daí decorre; a natureza positivista e incrementalista desta referência é notória e diz-nos que a força das práticas e do hábito conduzirão não apenas a uma efetiva modernização ecológica dos processos agroindustriais, mas, também, por efeito colateral, a uma modernização institucional e, ainda, finalmente, a uma autonomia da própria esfera de ação da ecologia; o aprofundamento da racionalidade ecológica criaria um rationale específico que se repercutiria positivamente sobre as outras esferas de atividade;

6ª tese: a TME é uma tese acerca de um capitalismo ecologicamente regulado, seja pela regulação pública ou a hétero regulação, isto é, estamos a institucionalizar a ecologia nas práticas correntes como nas instituições; 

7ª tese: a TME é uma tese acerca do papel central desempenhado pela ciência e a tecnologia, quer na definição e delimitação dos problemas ambientais como na regulação e gestão dos riscos;

8ª tese: a TME é uma tese acerca da distribuição do poder na formação e gestão das fileiras agroindustriais, em íntima ligação, de resto, com a carga regulatória dos governos, em especial, em redor dos complexos higiénico-burocráticos de regulação e inspeção; 

9ª tese: a TME é uma tese acerca da atualização do poder entre corporações e profissões, muito ligado ao aparato higiénico-alimentar, ao mesmo tempo que revela a fragilidade da sua base político-sociológica para se ligar a uma política ecológica que não se limite a ser uma mera modernização agroindustrial conduzida sob a égide da própria industria agroalimentar; 

10ª tese: a TME é uma tese acerca da modernização de economias desenvolvidas, logo carece de uma diferenciação estrutural importante em relação a zonas desfavorecidas.

Notas Finais

Em síntese final, estamos perante duas grandes versões da TME. Na primeira, a “versão fraca” da TME, trata-se de uma abordagem utilitarista, tecnocrática e corporatista própria das economias capitalistas mais desenvolvidas do centro da Europa. Na segunda, a “versão forte” da TME, estamos perante uma abordagem mais programática, que coloca questões novas de regime internacional e de governança global, digamos, questões de geopolítica e geoestratégia em matéria de ambiente e justiça ambiental que tem, claramente, uma conotação mais político-normativa, mais próxima das teses sobre o desenvolvimento sustentável. Na primeira versão, o capitalismo verde vai levar-nos do greening da produção até o greening do consumo Na segunda versão, os grandes acordos e as grandes cimeiras do clima correm atrás de um compromisso político que seja minimamente confiável.

Aqui chegados, as principais críticas à teoria da modernização ecológica no quadro do capitalismo verde podem ser resumidas do seguinte modo (Covas e Covas, 2010):

  • Para lá do sistema dominante, a TME é uma construção social com todas as implicações político-sociológicas que contém e significa,
  • A modernização ecológica, devido à sua forte componente tecnológica, carrega um risco acrescido e, sobretudo, no domínio agroalimentar, alarga o campo dos “objetos comestíveis não-identificados”,
  • A modernização ecológica, ao eleger o imperativo tecnológico, não faz o balanço dos impactos dos seus fluxos de energia e materiais, isto é, não é muito convincente que crescimento económico e ambiente caminhem de mãos dadas,
  • A modernização ecológica é, em boa medida, uma questão microeconómica, por um lado, e de política nacional, por outro, sendo certo que os grandes problemas ambientais são de global governance,
  • A modernização ecológica, por causa da sua “fé verde e tecnológica” menoriza ou secundariza dois problemas maiores: o papel da ciência e tecnologia e, sobretudo, do progresso científico, em primeiro lugar, e a resposta que dá aos riscos globais, em segundo lugar,
  • A modernização ecológica reconhece, porém, que o que é previsível hoje é a resistência das populações e não a sua satisfação com o progresso científico,
  • A modernização ecológica valoriza o admirável mundo verde das tecnologias limpas e da ecologia, mas não reconhece que produção e a qualidade alimentar são processos socialmente construídos e que os produtores e os consumidores podem construir circuitos curtos e diretos.

Agora que a nova Comissão Europeia inicia funções e inscreve no seu programa a prioridade à Ação Climática será curioso observar como é que a política pública escolhe os seus instrumentos e medidas de política nesta matéria. Entre a modernização ecológica fraca e a modernização ecológica forte, entre a emergência climática e a transição climática, entre os grandes riscos e os grandes desastres, haverá muito espaço para novos conflitos de interesses e equívocos políticos. Para seguir com toda a atenção.

Covas, A e Covas, M (2010), Modernização ecológica, serviços ecossistémicos e riscos globais, Edição da Universidade do Algarve, Faro.
Mol, A, Spaargaren, G, Sonnenfeld, D (2009), The ecological modernisation, Routledge Pub, New York.
Mol, A, Spaargaren, G, Buttel, F (2000), Environment and global modernity, Sage Pub, London.