Na semana passada, o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu sobre o caso de duas alemãs, uma educadora do ensino especial e uma operadora de caixa, suspensas pelos seus empregadores depois de se recusarem a deixar de usar um “lenço islâmico”.

E os juízes decidiram contra as duas mulheres, considerando, nos termos do comunicado de imprensa, que “a proibição de proibição do uso de qualquer forma visível de expressão das convicções políticas, filosóficas ou religiosas no local de trabalho pode ser justificada pela necessidade de a entidade patronal se apresentar de forma neutra perante os clientes ou de prevenir conflitos sociais”.

É uma frase impressionante, que usa uma linguagem menos cuidadosa do que a do acórdão, mas que respeita o espírito da decisão. É também o início de todos problemas. Desde logo, porque há boas razões para não se fingir que é possível amalgamar convicções políticas ou filosóficas (um conceito extraordinário, provavelmente usado para não deixar escapar as massas de trabalhadores que vestem t-shirts de apoio ao imperativo kantiano nos espaços de atendimento ao público) com a fé. A liberdade religiosa é protegida autonomamente como parte de uma esfera de consciência, por definição individual, com a possibilidade de associação e manifestação pública. As “convicções” religiosas são diferentes da militância partidária, do voto ou da participação política em sentido amplo, tanto pela sua natureza como pela forma de se expressarem. Dizê-lo não é original e não devia ser polémico, mesmo para um juiz no Luxemburgo.

Na Europa, a ideia de não confessionalidade do Estado tem sido desviada do seu propósito inicial e passamos da posição consensual sobre como o Estado não deve assumir como sua uma qualquer religião, especialmente quando nele várias têm de conviver, para uma situação em que as instituições sociais se opõem abertamente à ideia de religião e à sua exteriorização. A laicidade acabou por tomar o lugar oficial e com isso estamos a perder liberdade.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A ideia de que um ambiente “neutral” é um ambiente que exclui qualquer sinal de religião contraria o nosso passado e, segundo os números, também não é assim tão pacífica no presente. Apesar de todo o discurso de tolerância e progresso, a União Europeia tem hoje problemas de discriminação contra muçulmanos, casos de antissemitismo e a influência da Igreja Católica na política a justificar uma parte da má relação com o Leste europeu. Isso acontece porque a liberdade religiosa não é fracionável: atacar uma religião é pelo menos abrir a porta ao ataque a todas as outras e não se consegue defender uma religião em detrimento das restantes. Os casos acumulam-se, dos crucifixos nas salas de aulas às formas rituais de obter carne animal, e o debate parece estar a deslocar-se para a manutenção de vestígios religiosos nas nossas sociedades, o que seria um retrocesso.

Para além de falhar nos princípios, a decisão do tribunal também traz problemas mais simples. É evidente – e isso é reconhecido tanto pelos tribunais alemães como pelo Tribunal de Justiça – que um juízo sobre este tema será sempre mais importante para as mulheres muçulmanas do que para qualquer outro grupo, porque é por referência a elas que o vestuário se tornou objeto de legislação e litigação intensas nos últimos anos. Perante isto, o Tribunal de Justiça decidiu que na União Europeia de 2021 valia a pena obrigar a escolher entre religião e emprego. Da próxima vez que nos queixarmos da “marginalização” de algumas comunidades como a fonte de todo o tipo de problemas, devíamos lembrar-nos desta decisão.

João Diogo Barbosa, jurista (@jdiogospbarbosa no Twitter), é um dos comentadores residentes do Café Europa na Rádio Observador, juntamente com Henrique Burnay, Madalena Meyer Resende e Bruno Cardoso Reis. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00 e às 22h00. 

As opiniões aqui expressas apenas vinculam o seu autor.

Pode ouvir o último Café Europa aqui