Uma médica, Joana Bento Rodrigues, assinou no Observador um artigo sobre “a mulher, o feminismo e a lei da paridade”. No dito, a senhora, que é filiada no CDS, explica que a mulher “gosta de se arranjar e de se sentir bonita. Gosta de ter a casa arrumada e bem decorada. Gosta de ver ordem à sua volta. Gosta de cuidar e receber e assume, amiúde, muitas das tarefas domésticas (…)”. Em simultâneo, a mulher “gosta de se sentir útil, de ser a retaguarda e de criar a estabilidade familiar, para que o marido possa ser profissionalmente bem-sucedido.” A mulher também “é provida de um encanto, de uma ternura, que só se encontra na sua relação com os filhos”. Para cúmulo, a mulher “é um ser belíssimo e extraordinário”, e não um objecto, “presa para sexo fácil e espaço de diversão”.

Previsivelmente, o artigo revirou as entranhas da Terra: nas “redes sociais”, e não só nas “redes sociais”, milhares de cidadãos insistiram em pronunciar-se a propósito. Uma minoria (pareceu-me uma minoria) concordou com a dra. Joana e declarou que a mulher corresponde precisamente às maravilhas acima descritas. A maioria (pareceu-me a maioria) tentou levar simbólica ou literalmente a dra. Joana à forca, na convicção de que a mulher é o exacto oposto de tais maravilhas: a mulher não é fútil, a mulher não é subalterna, a mulher não é dependente, a mulher não é púdica, a mulher não é doméstica, a mulher não é um adereço, a mulher não é dócil, a mulher não é parideira.

Em ambos os casos, de que mulher falamos? Absurdamente, de todas. Naturalmente, de nenhuma. Não é questão de discordar do artigo da dra. Joana, ou das reacções ao mesmo. A questão é não imaginar o que leva alguém a generalizar o carácter, as circunstâncias, as apetências e as vontades de quase quatro mil milhões de criaturas, o número de mulheres existentes no mundo. Haverá as que alcançam o nirvana a produzir sopa e bebés. Haverá as exclusivamente devotadas a uma carreira na ciência, nos negócios ou na indústria dos resíduos sólidos. Haverá as que vão à missa e as que não vão à missa com a fé. Haverá as que são de rua, as que saem à rua e as que não saem de casa. Haverá as que exigem subir pelo mérito e as que se contentam em subir por quotas. Haverá as que não desejam subir a parte alguma. Haverá as que querem conciliar tudo e as que não querem conciliar nada.

O que nunca haverá é paciência para os prosélitos da dra. Joana e para os indignados com a respectiva cartilha, os quais, por oportunismo, arrogância, delírio ou projecção, tendem a ignorar que, salvo pelas fanáticas dos dois lados da trincheira, cada mulher é uma pessoa com interesses particulares e contraditórios entre si. E uma pessoa que, salvo melhor informação, não passou a essa gente procuração para falar em seu nome. Falar da mulher em sentido lato é tão razoável quanto eu afirmar que os Albertos em peso apreciam ovos escalfados e a terceira temporada de “True Detective”.

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Por azar, o problema com as generalizações não é apenas serem cretinas: é serem abundantes. Em pleno século XXI (essa frase deliciosa e vazia), a consagração das “políticas identitárias” está a conduzir o Ocidente de regresso à saudosa década de 1950, quando se catalogava a humanidade pelas importantíssimas categorias do género, da orientação sexual, da cor e do calhava – logo que o género, o sexo, a cor e o que calhar preencham certos requisitos. Um homem, heterossexual, branco e assim não é de grande serventia, excepto a de alvo de protestos sortidos. O resto é invariavelmente de valor, e constitui factor fundamental na construção das “identidades” individuais, por acaso assaz semelhantes às colectivas. Nestes avariados tempos, antes de ser engenheira, hipocondríaca e fã de Springsteen, a Isabel é mulher. Antes de ser cozinheiro, alcoólico e míope, o Paulo é gay. Antes de ser professor de Francês, bipolar e pai de dois rapazes, o Artur é preto. E a Rita, que é mulher, lésbica, mestiça e praticante de candomblé, ganhou a lotaria da vítima e o jackpot da opressão: o direito a maçar terceiros com irrelevâncias que não lhes dizem respeito.

Não vale a pena lembrar que as irrelevâncias biológicas substituíram as contingências laborais na luta da esquerda pelo conflito perpétuo. Talvez valha a pena notar que não é a substituir uns estereótipos por outros que a direita vai lá. Na essência, a “mulher” da dra. Joana do CDS não difere da “mulher” da dra. Catarina do BE. Na ânsia de se apoderarem das cabeças alheias, conservadores e progressistas esgadanham-se para reduzir sujeitas de carne e osso a entidades míticas, caricaturas, marionetas ao dispor de alucinados. Felizmente, tirando as próprias alucinadas, estas mulheres são imaginárias. E as verdadeiras têm mais o que fazer, incluindo, se possível, fazer o que lhes apetece.

Nota de rodapé:

Um antigo vencedor do “Big Brother” brasileiro veio palestrar à universidade de Coimbra, com honras e recepção a cargo do sociólogo Boaventura Sousa Santos. Não consigo encontrar nada de inadequado no facto acima, pelo que não o comento.