Quando tomou posse, em Novembro de 2019, o Governo Costa era já, em termos políticos, um Governo condenado. Nascido de uma minoria pífia no melhor clima económico em décadas — no último período minimamente comparável, Cavaco teve uma maioria colossal —, o discurso e as escolhas ministeriais denunciavam a sua situação: sem qualquer tipo de ideia que não fosse a gestão comezinha e banal do dia a dia e com ministros oriundos do aparelho nada se poderia esperar. A aposta passava, então, por uma clarificação no prazo de um, dois anos, contando com a apatia generalizada e a cumplicidade, sempre presente, da imprensa.

A pandemia chegou e fez o Governo assumir protagonismo, económico, social e político. E, inevitavelmente, espoletou importantes efeitos políticos.

O primeiro deles é a legitimação política. Para um Governo que não tinha projecto, ideias ou sequer a mínima noção do que fazer, a pandemia trouxe um propósito e uma agenda, ambos duradouros. Ninguém tenha dúvidas que serão ainda os efeitos da pandemia a ditar o destino de uma próxima eleição, seja ela em 2022 ou 2023.

O segundo efeito é a desresponsabilização. Por mais paradoxal que possa parecer, a pandemia dá um projecto ao Governo, mas, simultaneamente, desresponsabiliza-o, fornecendo-lhe uma narrativa perfeita para os próximos anos. Como já se percebeu, tudo o que acontecer daqui para a frente — da nacionalização da TAP ao Novo Banco, do aumento da dívida ao aumento do desemprego — será responsabilidade da pandemia. Logicamente, o Governo limitar-se-á a tentar remendar danos e se, como se espera, tudo correr mal, lá estará a pandemia para arcar com tudo. E, assim, num ápice, apagam-se os erros dos últimos 5 anos: a manutenção da dívida em níveis historicamente elevados, a ausência de qualquer mudança séria no país, a dependência do turismo, o nepotismo na esfera do Estado.

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Podíamos fazer um ar de surpresa, mas a estratégia de desresponsabilização não é nova: depois de 2009, a narrativa socrática que conduziu ao desastre de 2011 não era muito diferente.

O terceiro efeito, estritamente ligado com o segundo, é a assunção de uma agenda ideológica. Entre 2015 e 2020, a Europa impediu qualquer delírio estatizante ou de intervenção na economia. Tudo isso mudou: com os milhões vindos de Bruxelas e a permissão para défices colossais, voltará, à boa maneira portuguesa, o keynesianismo de bêbados. As obras públicas crescerão, os campeões nacionais voltarão a ser protegidos e a criação de uma sociedade de dependentes voltará a ser uma realidade. Tudo, repita-se, numa dolorosa, mas óbvia repetição da estratégia suicida do final da década passada. Depois, quando percebermos o buraco em que estamos metidos, concordaremos, com a condescendência habitual, que a pandemia deverá, ainda e sempre, ser responsabilizada.

Dez anos depois, a narrativa voltou. E com ela voltou também o espinhoso caminho para a destruir. É esse que agora começa — para aqueles, obviamente, que não se deixam iludir pela espuma dos dias.