Na semana passada, recebemos a notícia de que a Porto Editora iria repor no mercado os seus livros de actividades para meninos e raparigas. Saúdo essa decisão. Até esse momento, enquanto pairava a sombra de ter havido censura, sentia-me moralmente impedido de criticar estes cadernos de actividades. Como criticar um livro censurado pelo poder político? Censurado talvez seja uma palavra demasiado forte, como se veio a constatar, mas é um facto que tinha sido retirado do mercado por pressão política. E considero isso inadmissível. Recomendações da Comissão para a Igualdade de Género são bem-vindas, orientações de ministros para retirar livros são inaceitáveis. Agora, com a circulação reposta, posso dizer o que penso sobre os livros.

Um aspecto pouco referido é que os cadernos são estupidamente fáceis, não representam qualquer tipo de desafio para uma criança de 5 ou 6 anos. De certa forma, são quase fraudulentos: fica um pai convencido de que a sua criança de 3 anos é um génio, por resolver com a maior das facilidades exercícios de um livro “adequado” para petizes de 6 anos. E um livro, mesmo que de actividades, deve fazer-nos mais inteligentes e não mais burros.

A polémica sobre estes livros começou com uma foto de dois exercícios similares, mas que no livro dos meninos era bastante mais difícil que no das raparigas. A polémica começou mal porque começou com algo perfeitamente acessório e casual. É evidente que ninguém (excepto um completo javardo) iria fazer livros com graus de dificuldade muito diferentes para meninos e raparigas. Obviamente que isso apenas podia resultar de um acaso, de uma descoordenação entre autores ou de algo que seria compensado com outros exercícios em que a dificuldade relativa se invertesse. E, reafirmo, falo em dificuldade relativa, porque tudo aquilo é estupidificante de tão fácil.

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Apesar de mal focada, a polémica teve um efeito engraçado, se bem que um pouco previsível, que foi o de muita gente reagir dizendo que as raparigas são muito mais espertas e inteligentes do que os meninos e que portanto deveriam ser elas a fazer os exercícios mais difíceis. Aliás, para muita gente só existe um problema se forem as raparigas a ser maltratadas. Interpretam a discriminação de género como algo que apenas é relevante se prejudicar as raparigas. Isso mesmo podemos perceber na defesa que a Porto editora fez do livro, argumentando que as autoras eram todas mulheres, e no relatório que escreveu e que passo a citar: “- Na atividade 3, enquanto a Sara vai a um museu, o Pedro está simplesmente na rua a olhar para um prédio. – Na atividade 4, a Marta gosta de ler (atividade mais complexa), enquanto o Guilherme brinca com carrinhos.” E, já que tanta gente defendeu a Porto Editora com base no que disse o Ricardo Araújo Pereira no Governo Sombra, permito-me citá-lo também: “Há estereótipos de género nos cadernos? Há. De facto, o universo das meninas é tendencialmente o das princesas, o dos rapazes o dos piratas (…) as meninas fazem bastantes vezes actividades domésticas e os meninos actividades de ar livre (…). Há estereótipos de género nocivos para ambos os lados.”

(O vídeo pode ser visto aqui.)

E esta é a questão fundamental. Uma das coisas que mais me diverte quando explico a alguém por que defendo políticas de igualdade de género é explicar que o faço por motivos puramente egoístas e não para ser bonzinho. Como homem, e só por ser homem, sei que, se me divorciar, a probabilidade de ficar eu com as minhas filhas é severamente reduzida. Isto é assim independentemente de tudo o que eu possa alegar a meu favor em tribunal de família — e isto apesar de começar a ser comum o princípio da guarda partilhada dos filhos. Também sei que, se tiver um filho, em vez de uma filha, a probabilidade de ele se envolver em rixas de rua e acabar espancado ou morto é maior, ou de se envolver em gangs, ou de ir parar à prisão, ou de ser mau aluno, porque estudar é coisa de rapariga, e por aí fora. Quanto às mulheres, são prejudicadas no mercado de trabalho, são as cuidadoras preferenciais, são mais vítimas de assédio (e de violações), metem-lhes na cabeça que valem sobretudo pelo aspecto, etc.

Como professor universitário, há uma estatística que salta à minha vista praticamente todos os dias: a percentagem de raparigas que entra no ensino superior por contraponto aos meninos. Nas minhas aulas de economia, tipicamente, a proporção é de duas para um. E vejo muito pouca gente preocupada com isso. O abandono escolar entre meninos é muito maior do que entre raparigas. Seja porque o ensino secundário está muito feminizado (há muito mais professoras do que professores, por exemplo), seja porque os meninos têm melhores alternativas de emprego cá fora, seja porque não é cool os meninos estudarem, seja porque os pais têm expectativas diferentes, seja porque os cérebros são diferentes, ou porque as raparigas amadureçam emocionalmente mais cedo, a verdade é que até aos 18 anos são crianças e nós, enquanto sociedade, estamos a falhar para com eles. Este falhanço é ainda mais grave porque é cada vez mais provável que as profissões do futuro exijam pessoas academicamente bem preparadas. Mas, como muita gente confunde discriminação de género com as raparigas serem discriminadas, discute-se muito mais o facto de haver menos raparigas nos cursos de engenharia do que meninos nos cursos de medicina ou no ensino superior em geral.

Mas temos de obrigar os sexos a ser iguais? Não os podemos deixar ser diferentes? Não, não temos de os obrigar a ser iguais, mas também não temos de os obrigar a ser diferentes. Todos podemos concordar em ser a biologia um factor importante (basta olhar para as várias espécies de mamíferos), mas também é óbvio que a socialização é importante. Além disso, as sociedades humanas há muito que deixaram para trás o determinismo da biologia. Se assim não fosse, seriam os homens a usar saias, para arejar os seus órgãos genitais, que são externos precisamente para estarem a uma temperatura mais baixa do que o resto do corpo — razão têm os escoceses, portanto. Ou, usando outro exemplo, se, realmente, há razões biológicas para os homens serem mais criminosos do que as mulheres (justificando assim o facto de haver muito mais homens que mulheres nas prisões), não faz qualquer sentido não tentar contrariar a biologia por via da socialização e educação.

Mas voltamos ao mesmo, qual é o problema de haver livros de actividades para meninos e raparigas? É muito simples argumentar que lá por ler aqueles livros a rapariga não é impedida de ir, por exemplo, para astronomia. E é verdade que não é impedida, mas é condicionada. Quer a rapariga quer o menino. Negar isso é negar a ciência. Os adversários da igualdade de género gostam muito de citar estudos científicos que mostram que, desde tenra idade, os meninos e as raparigas têm gostos, interesses e comportamentos diferentes. E é verdade, esses estudos existem. Mas há também vários estudos, totalmente credíveis, publicados nas melhores revistas, a demonstrar que o lado da socialização é também importante e condicionador. Só para dar um exemplo, este ano foi publicado um estudo na mais prestigiada revista científica, a Science, intitulado “Gender stereotypes about intelectual ability emerge early and influence children’s interests”, no qual Lin Bian (University of Illinois), Sarah-Jane Leslie (New York University) e Andrei Cimpian (Princeton University) demostram que desde os 6 anos de idade as raparigas passam a evitar actividades que são para crianças brilhantes («really, really smart»), isto apesar de mais tarde terem consciência que são melhores alunas. Ou seja, ficam com a ideia sobre si próprias de que não são brilhantes, são aplicadinhas. Estes livrinhos da Porto Editora são mais uma peça na construção destes estereótipos que em vez de aumentarem a liberdade das crianças a condicionam. Enquanto livros educativos, falham rotundamente a missão de educar. Volto pois a dizer que acho muito bem que vendam estes livros; mas acho ainda melhor que ninguém os compre.

Confesso alguma dificuldade em perceber por que é este assunto tão difícil. É assim tão complicado de perceber que a biologia implica diferenciação, mas não discriminação? Como dizia Vera Gouveia Barros no Facebook, é normal, razoável e perfeitamente explicável que os anúncios de pensos higiénicos tenham mulheres e os de lâminas de barbear tenham homens. Do mesmo modo, se numa colónia de férias puser protector solar 50 aos meninos caucasianos e 30 aos meninos negros, não estarei a discriminar. Mas é racismo bastante evidente mandar os brancos nadar e os negros correr.

Quando se educa uma criança o objectivo deve ser aumentar-lhe a liberdade. Alargar os seus horizontes, ampliar as suas possibilidades de escolha. É um facto que os negros ganham muito mais medalhas do que os brancos no atletismo, tal como é um facto que os brancos ganham muito mais medalhas na natação. Seja por razões biológicas seja por razões culturais/sociais, espero que não passe pela cabeça de ninguém que nos livros de actividades estejam os brancos na piscina e os negros a correr à volta numa pista.