Uns dias em Bruxelas foram o suficiente para perceber que a Europa está mergulhada num paradoxo trágico: as elites querem manter uma ideologia cosmopolita e a hospitaleira (no sentido kantiano de termo) e a população quer uma Europa com menos migrantes, que perceciona como a causa de todos os seus novos medos e inseguranças. Se a Comissão Europeia não tenta aplacar as ansiedades dos cidadãos, vai afastar-se cada vez mais dos mesmos – e as consequências são imprevisíveis. Se tenta, esbarra contra um muro de críticas das elites. A mais perigosa é a de que a agenda da extrema-direita está a apoderar-se do pensamento do centro moderado.

Mas será exatamente assim? Importa refletir sobre o novo e controverso portfolio da Comissão Europeia – uma das bandeiras de Ursula von der Leyen – a que se chamou “Protegendo a nossa forma de vida Europeia”. É uma versão europeia atualizada da ideia que surgiu no início da Guerra Fria que declarava que os Estados Unidos tinham que defender a “American way of life” contra tentativas disruptivas da União Soviética de subverter o espírito da democracia americana. Assim é legítima a pergunta: a Europa tem a sua “forma de vida” ameaçada?

No seu manifesto pré-nomeação, Ursula von der Leyen explica que defender a forma de vida europeia significa, essencialmente três coisas: proteger o estado de direito; reestruturar as políticas de asilo e a migração; e reforçar a segurança internacional. Ora, estas políticas pressupõem que os agentes dos quais a Europa tem de se proteger são os partidos e movimentos políticos que não partilham os valores europeus, a imigração desregulada e as potências internacionais. Cada um dos temas se justifica e merece consideração, mas este artigo concentra-se nas questões migratórias.

O acolhimento desordenado de refugiados e migrantes teve as consequências que se conhecem. Mais, a crise de 2015 e o subsequente acolhimento de cerca de um milhão de refugiados pelo governo de Angela Merkel demonstrou três coisas: que os cidadãos europeus são menos tolerantes relativamente aos estrangeiros do que os líderes esperavam; que os partidos de direita radical transformaram esses eventos em narrativas alarmistas – associadas, normalmente, ao desemprego, à violência, ao terrorismo e à perda de identidade –; e que as opiniões públicas estão muito recetivas a estas narrativas. Não necessariamente por serem racistas ou xenófobas, mas porque os cidadãos europeus, desde a crise, perderam a confiança no futuro, e acabam por procurar culpados “fáceis” para as suas inseguranças.

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Este é, porventura, o problema mais sério que a Europa tem de enfrentar. Por uma razão: porque divide elites, opinião pública e é explorado por partidos extremistas – de formas diferentes, à esquerda e à direita – que vêm uma oportunidade de se destacaram aos olhos dos eleitores.

As elites europeias transformaram-se no guardião zeloso da hospitalidade. Ainda que defendam os valores certos, a sua intransigência torna-as incapazes de ver que há problemas sérios a que é preciso fazer face para que os refugiados e migrantes tenham a integração que precisam e as populações se sintam confortáveis com a sua presença. Ao invés refugiam-se num ideal kantiano que não pode ser beliscado, sob pena de destruir a sua própria conceção – que por vezes é fantasiosa – de uma europa exemplar.

Mas sem olhar para as preocupações legítimas das pessoas comuns, que querem ver assegurado o seu bem-estar, a União pagará o preço de se afastar ainda mais daqueles que deve servir – abrindo um espaço cada vez maior para alternativas antieuropeístas. Ursula von der Leyen percebeu este dilema e quer “aliar as preocupações legítimas de muitos e ver como podemos ultrapassar as diferenças.” Diz bem que “precisamos de uma nova forma de distribuição de esforço, precisamos de um novo começo”. Não há nada neste depoimento que seja anti-imigração ou anti acolhimento de refugiados. Não há nada nestas palavras que aproxime a Comissão de agendas extremistas ou xenófobas. Nem nada que vá contra os princípios europeus.

Assim, as críticas das elites favorecem os partidos extremistas que têm espaço para acusar von der Leyen de fazer menos do que devia em relação às migrações (segundo a extrema direita) ou de ter adotado a agenda dos radicais de direita (segundo a extrema esquerda). Esta última acusação, ajudada pelo politicamente correto, começa também a ganhar importância junto dos mais moderados. Por outras palavras, a Comissão quer ter uma posição moderada relativamente a esta matéria e, por razões ideológicas ou de oportunismo político de diversos atores, terá que ter muita habilidade política para gerir este falso dilema.

Fazer face às ameaças à Europa através de um portfolio com uma designação que já se adivinhava controversa foi um erro político. Mas isso não significa que a Comissão Europeia tenha identificado mal os problemas pendentes, e muito menos que tentar resolver questões relacionadas com as migrações não deva ser uma prioridade absoluta. Fazer disso motivo para dizer que a extrema-direita tomou conta da agenda moderada não só é uma interpretação profundamente abusiva como põem em risco o desenvolvimento de soluções equilibradas para todos.

Se é de esperar que os extremistas continuem a usar estes episódios em proveito próprio, espera-se também que as elites pró-europeias moderem as suas posições e sejam parte da solução e não do problema. Para não perpetuarem o paradoxo trágico onde podem estar a mergulhar as instituições que querem preservar. Para não se afastarem definitivamente dos cidadãos que legitimamente querem ver os seus problemas mitigados.