No mesmo dia em que está imposta uma cerca sanitária à Área Metropolitana de Lisboa, o Presidente da República e o presidente da Assembleia da República preparavam-se para sair de Lisboa para assistir a um jogo de futebol em Sevilha. Marcelo justifica-se por ter a vacinação completa esquecendo (como sucede quando lhe convém) que é presidente de TODOS os Portugueses e que deve dar o exemplo que se aguardava viesse de cima. Marcelo e Ferro não queriam perder o jogo; há quem não queira deixar de visitar a família e não o possa fazer porque esta se encontra fora da Área Metropolitana de Lisboa. Cidadãos que, não estando vacinados, podem até não ter condições para pagar um teste à Covid-19. Devidamente vacinados, Marcelo e Ferro não queriam ser prejudicados em virtude do mandato que exercem e, por esse motivo, deixar de assistir ao jogo no estádio. Ora, ninguém lhes pediu para estarem nos cargos que ocupam. Ninguém lhes pediu que quisessem a responsabilidade, mas a partir do momento em que a desejaram e esta lhes foi confiada, exige-se que a assumam.

Não é fácil ser Presidente da República ou a segunda figura do Estado. É algo com significado e que se devia concretizar numa acção e atitude dignas do cargo.

Entretanto, a Câmara Municipal de Lisboa envia dados de manifestantes aos homens fortes da Rússia, Arábia Saudita e Irão. Não estamos a falar de democracias, mas de ditaduras que exercem o poder com mão pesada, que prendem, batem e matam. Naturalmente, não passa pela cabeça de ninguém que a actuação da autarquia lisboeta tenha sido intencional, como o PS (numa técnica que já farta) refere com vista a ridicularizar a crítica e, dessa forma, a diminuir; porque o que está em causa não é a intenção, mas a negligência, a falta de cuidado e consideração pela vida alheia, pelos direitos humanos, uma negligência com consequências políticas e que exige responsabilidade política.

Também não deve ser fácil ser presidente da maior autarquia do país. É algo com significado e que se devia concretizar numa acção e atitude dignas do cargo.

Mas há mais: de acordo com o Expresso, as principais páginas online do SNS passaram à Google dados de tráfego sobre os seus utilizadores. A utilização posterior que a empresa faz desses dados é, como não podia deixar de ser, comercial. Segundo o mesmo jornal, esta partilha de dados dos utilizadores alastrou-se aos sites da Assembleia da República, da GNR e da PSP, entre outros. Ou seja, de cada vez que utilizamos estes sites do Estado, as nossas preferências digitais vão parar a uma multinacional que nos quer vender produtos e condicionar as nossas escolhas. A internet é uma bolha que reduz o mundo às pesquisas que fazemos, facto que se acentua quando uma empresa detém o maior motor de busca na rede. Este simples facto não é necessariamente um problema pois há motores de busca alternativos ao da Google, bastando para o seu uso uma nova habituação. Apesar de a partilha de dados de tráfego com a Google não se equiparar à partilha de dados pessoais com a Rússia, Arábia Saudita e Irão, o ponto é que não seria de esperar que o Estado português contribuísse para o esforço montado a partir de Mountain View, na Califórnia, com vista ao condicionamento das nossas escolhas digitais. Na verdade, um Estado de Direito deve pugnar pela liberdade de escolha; não pelo seu condicionamento, qualquer que este seja e venha de onde vier.

Vivemos dias de restrições das liberdades que recebemos de forma acrítica. A Rússia prende opositores, a China fecha jornais que escrutinam a actuação do seu governo. O encolher de ombros com que os governos ocidentais encaram estes atentados às liberdades é equivalente à atitude que temos perante o comportamento de Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa, Ferro Rodrigues e Fernando Medina. Também neste caso a gravidade do comportamento dos primeiros não é comparável aos últimos, mas a apatia perante qualquer deles é semelhante. A indiferença é a nova cortina de ferro que se abate, desta vez não sobre a Europa, mas sobre os nossos espíritos; sobre a nossa resistência interior, a nossa crença mais profunda, os nossos valores mais altos. É essa indiferença que permite a desigualdade que se acentua entre os cidadãos que estão longe ou fora do sistema de poder que governa Portugal e os que dele se abeiraram e dele beneficiam.

Ao contrário do que sucedeu há dez anos, a crise da década que neste ano se inicia não será apenas económica, mas também política e cultural, pois são as bases do mundo tal como o conhecemos e ao qual nos habituámos que estão a ser abaladas. Vamos precisar de muito sangue-frio, serenidade e intrepidez para deixarmos aos nossos filhos um mundo tão bom quanto o que os nossos pais nos legaram.

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