Quando um português entrava numa corte europeia do século XVI despertava interesses, admiração e respeito. Era o portador de mil mundos e outras tantas mil respostas. Era um diplomata, erguido nas suas próprias conquistas. Diz-nos Kissinger que, depois, no séc. XVII surgem outros atores carismáticos – sendo um deles o Cardeal Richelieu, destinado a impor a ideia de estado-nação e redesenho moderno das relações internacionais. No séc. XVIII foi o tempo da Grã Bretanha, com os famosos equilíbrios de poder. Depois surgiram os estilos austríaco, a Alemanha de Bismark e o sec. XX com uma influência admirável dos EUA. Não incluo a China nestas considerações porque não vejo o seu poder assente em formas de diplomacia ou influência típicas. O seu poder é de outra espécie e o jogo económico é um dos pilares centrais da sua estratégia.

Num mundo pós Covid-19 um dos temas que vai dar que falar é exatamente o tema das relações internacionais. Nada vai ficar como antes. Uma nova diplomacia irá imergir e, desta vez, são os cidadãos os seus atores principais. Os mesmos cidadãos que agora se ligam de forma digital em teletrabalho e discutem os benefícios de aplicações de controlo sanitário nos seus telemóveis.

Esta nova diplomacia não necessitou de ser evangelizada nem as suas virtudes explicadas em salas de reunião de empresas, em reuniões ministeriais ou em encontros secretos de elites económicas. Entrou nas nossas casas sem permissão e fê-lo num ápice, em dimensão planetária.

Chegou o tempo da diplomacia digital. O tempo em que os países se reinventam aproveitando a força das dinâmicas económicas e sociais geradas pela crise.  O tempo em que os interesses dos estados são representados pelos seus cidadãos – pela soma de todas as interações de cada elemento. Se no séc. XVI um português levava todos os interesses do país para um baile em Versailles, no séc. XXI, por sua vez, esses interesses vão estar dispersos – quase tokenizados – em pequenas partes por cada participante do contrato social. Esses fragmentos serão emissários para todas as partes do mundo de forma instantânea.

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O pedaço mais incrível desta construção é a crise ter surgido num momento de transformação tecnológica e digital que custava a ser aceite pela maior parte das instituições, governos ou corporações. O vírus é mortal mas também está a demonstar um enorme grau de cinismo e ironia. Estamos a dançar ao som das suas desarmonias.

Nos próximos 10 anos haverá mais tokens super valorizados do que empresas unicórnio. A maior parte do comércio mundial será suportada por tecnologia Blockchain e a grande parte dos países do mundo irá adotar um qualquer tipo de cripto moeda.

A identidade das pessoas passará a ser digital e os padrões de qualidade de vida não resistirão às vantagens da inteligência artificial e da tecnologia. Os registos governamentais serão digitais, assim como os certificados académicos e os registos clínicos. A personalidade jurídica das máquinas irá conviver ao lado dos direitos dos humanos e o pagamento de impostos por robots será um facto.

Novas profissões irão surgir e outras tantas vão desaparecer. Tudo isto afetará a diplomacia. Estas transformações vão regenerar o tecido económico e estarão associadas a aumentos exponenciais do PIB. Esta ordem digital e tecnológica será irresistível porque aumentos do PIB trazem, consequentemente, maiores índice felicidade.

Antes da pandemia perdi muitas horas a falar das vantagens do dinheiro digital, da sua regulação e do erro que Wall Street cometia por assumir uma posição de desvalor em relação à Bitcoin – eu próprio tinha dúvidas acerca das conclusões que retirava. Mas bastou esta pandemia para o Congresso dos EUA discutir uma proposta de criação de dólar digital para fazer chegar liquidez a todos os cidadãos de forma rápida e segura.

Também vi muitos entusiastas da tecnologia a esforçarem-se em relação às vantagens do registo de nascimentos digital. Neste tema foi Portugal a dar o mote e a introduzir esta possibilidade para garantir o registo de nascimentos num momento de encerramento de serviços e confinamento de pessoas.

Estas escolhas coletivas estão a transformar o mundo que conhecíamos e os próprios governos terão de adaptar as suas políticas a estas novas realidades. Se as corporações já eram um poder mais dinâmico do que muitos estados, imagine-se uma sociedade em que cada um dos elementos do contrato social é quem dita as regras. É que, num cenário como este, o nosso Governo pode vir a ser, ele mesmo, um algoritmo. Um algoritmo que orientará outro algoritmo responsável pela diplomacia digital.  Resta saber se ainda vamos a tempo de garantir que estes algoritmos falem português.