A vida de William Ebenstein atravessou os três quartos mais marcantes do século XX. A análise aguda do período em que viveu, deu-lhe o pleno direito de figurar entre os mais relevantes cientistas políticos do século. A sua análise dos quatro ismos, o comunismo, o fascismo, o capitalismo e o socialismo, foi um marco na sistematização e compreensão dos sistemas que marcaram cem anos de enorme intensidade e mudança sem precedentes. Ebenstein não viveu o suficiente para assistir à queda do Muro e à reconfiguração dos ismos. À distância de 30 anos, o quadro político mundial é profundamente diferente. O comunismo só sobrevive nas periferias da civilização, o fascismo felizmente morreu, o capitalismo foi tomado pelo ultraliberalismo selvagem e não há notícias do socialismo, a não ser uma certa resiliência da social democracia.

O século XXI está ancorado em novas correntes políticas, subsistindo apenas, por motivos práticos e de oportunidade, a velha arrumação entre esquerda e direita. As grandes novidades são a pós-ideologia e os diferentes populismos de esquerda e de direita. A pós-ideologia tende a emanar do exercício do poder pelo poder e a ocupar um espaço impressionante no equilíbrio de poderes da ordem mundial. Putin, de modo assumido, e Xi, de modo ambíguo, têm sido os grandes protagonistas deste desprezo ou manipulação das ideologias, submetendo-as ao pragmatismo da gestão variável dos seus interesses estratégicos. Ninguém adivinharia nos anos setenta da URSS, que a Rússia do século XXI seria a grande promotora e financiadora da extrema-direita e de diferentes populismos ocidentais, influenciando abertamente o poder americano. Ninguém fez a futurologia de uma China megacapitalista ou da pulverização dos blocos então existentes.

Hoje, mais do que se ser apologista de um conjunto de ideias, é-se, em primeiro lugar, contra um conjunto de ideias e comportamentos. Pior, é-se contra aquilo que é a construção e mitificação do outro, do novo inimigo. A ideia é, acima de tudo, dividir e tribalizar. A realidade e a verdade passaram de moda e passaram a ser um instrumento fluido adaptável aos interesses do grupo. Mais do que provar a validade do grupo, interessa investir na descredibilização e diabolização do adversário. Mais do que debater sobre a diferença, interessa instigar o ódio a todo o custo. Não interessa argumentar, apenas demolir violentamente o diferente. A resposta racional e fundamentada foi sepultada aos pés do altar dos instintos básicos. A moderação e o compromisso deram lugar a um orgulho medievo nas virtudes do pensamento de Talião.

A esquerda clássica, de raiz mais ou menos totalitária, de braço dado com uma elite cultural que se auto-perpetua e domina a comunicação, asfixiou as sociedades ocidentais sob o pensamento único do politicamente correcto. A arrogância, a violência da imposição da agenda fracturante sobre uma sociedade moderada e conservadora. As diferentes perseguições públicas dos diferentes Torquemadas, do sinistro #metoo aos tiranetes bloquistas do burgo. Tudo isto, conjugado com a moderação e razoabilidade da direita tradicional, criou a tempestade perfeita para a eclosão generalizada da extrema-direita populista. A direita, que era até há pouco o penhor da racionalidade, da moderação e do sentido de responsabilidade na defesa intransigente da democracia, vê-se invadida por uma nova direita, como bem classificou Fernando Henrique Cardoso, “troglodítica”. A resposta ao insuportável politicamente correcto passou a ser o racismo, a xenofobia, a calúnia, a perseguição, o desprezo da razão, uma nova fractura social e, acima de tudo, o ódio. Tal como no marxismo e seus herdeiros, não há adversários, há inimigos.

Como sempre quando surge uma oportunidade de protagonismo e influência, começamos a assistir ao fomento deste populismo por diferentes actores com visibilidade no espaço público. De repente, quem não alinha nesta nova cruzada, quem não está disponível para mandar a coerência e princípios à fava, quem insiste na razão e no bom senso, passa a estar classificado como a direita fofinha, de peluche ou colaborante, consoante o entusiasmo do convertido. Brigadas organizadas nas redes, de perfis mais ou menos verosímeis, abatem-se sobre cada alma saia da cartilha radical, sendo o veredicto invariavelmente o mesmo, o novo ímpio está a caminho do Bloco. A mais leve dúvida sobre o comportamento do Sr. Trump, põe-nos a caminho do Bloco, na boca dos fiéis da seita. O incómodo com os apelos a decapitações feito por Bannon, de imediato nos classifica como peluches da esquerda. A perplexidade com as enormidades e permanentes contradições de Ventura, dá, nas palavras dos alinhados, direito a cartão gold do BE. A indignação com a morte de George Floyd ou as propostas verdadeiramente nazis de perseguição à comunidade cigana põe-nos na prateleira dos fofinhos. Em suma, toda a direita que resiste a um padrão de raciocínio troglodita e de reacção instintiva básica, estará a caminho do Bloco, no permanente bullying da extrema-direita rufia e arruaceira.

A maioria não está habituada a ser resistência. A direita que ainda governa grandes Nações, por sinal, as mais civilizadas do mundo, terá de aprender a ser resistência. O que antes vinha classicamente da extrema-esquerda, passou a vir em iguais doses da extrema-direita; exactamente com a mesma agressividade, com a mesma falta de pudor democrático, com o mesmo desprezo pela verdade e pela ética. O impacto que a esquerda moderada e democrática teve, há muito, com a esquerda radical, é agora sentido à direita, com a violência e dano que a excitação dos novos fenómenos sempre implica. O combate à indesejável e perigosa bipolarização social que ambos os extremos ambicionam, é o grande desafio dos protagonistas democráticos à esquerda e à direita. A resistência deixou de ser um fenómeno de franjas para ser um imperativo da grande maioria que ocupa o centro das nossas Democracias.

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