Desde a sua criação que coexistem na Organização das Nações Unidas (ONU) dois legados. Um deles, o democrático, presente na Assembleia-Geral, pois cada país tem direito a um voto qualquer que seja a sua posição na hierarquia mundial. O outro legado, o maquiavélico, presente no Conselho de Segurança, uma vez que os cinco membros permanentes – Estados Unidos, Rússia, China, Inglaterra e França – dispõem do direito de veto e, como tal, podem recusar as decisões que os prejudicam ou aos seus aliados.

No entanto, aos dezassete dias do mês de outubro do ano da graça de 2019, a Assembleia-Geral fez questão de reforçar que na organização já vigorava um terceiro legado. Aquele que parece correto designar como o legado hipócrita da ética camarada.

De facto, nesse dia a Venezuela, que foi sovietizada por Chávez e que, após uma eleição viciada, passou a ser desgovernada por Maduro, foi eleita como membro do Conselho de Direitos Humanos da ONU, de nada valendo os esforços da Human Rights Watch e de mais de meia centena de outras organizações não governamentais no sentido de a ONU não aceitar a candidatura venezuelana. Uma vitória conseguida à custa da Costa Rica que, juntamente com a Venezuela e o Brasil, se tinha candidatado a um dos dois novos lugares a que a América Latina e Caribe terão direito no próximo triénio a iniciar em janeiro de 2020.

Uma eleição estranha se for tido em conta um relatório da própria ONU, datado de julho do corrente ano, a dar conta de que, desde 2018, pelo menos 6856 venezuelanos foram assassinados em confrontos com as forças fiéis a Maduro. Sem contar que, em maio de 2019, cerca de 800 venezuelanos continuavam detidos às ordens do regime de uma forma totalmente arbitrária e ao arrepio dos mais elementares direitos humanos.

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Dados que podem ser comprovados e/ou complementados por relatórios de outras organizações independentes. Por exemplo, um relatório da Organização dos Estados Americanos (OAS) dá conta de 12800 detenções arbitrárias desde 2014.

Não admira por isso que a Freedom House, no seu relatório mais recente, considere que a Venezuela não é um país livre, pois apenas atinge 19 pontos numa escala de 0 a 100. Direitos políticos e liberdades civis são dois assuntos de que é proibido falar no país de Nicolás Maduro. À boa maneira da antiga URSS ou, na atualidade, da Coreia do Norte, da República Popular da China e de outros países que continuam a ver no comunismo – qualquer que seja a designação – amanhãs que cantam. Um futuro que justifica oficialmente as atrocidades cometidas no presente.

Aliás, é a persistência de tantos regimes ditatoriais – o mais recente Índice de Democracia do The Economist contabiliza 53 regimes autoritários num total de 167 países analisados – que viabilizou a eleição da Venezuela. Uma espécie de revisitação do apelo marxista com os proletários de outrora a darem a vez aos ditadores de agora. Por isso, a Venezuela irá ocupar o posto que pertencia à ditadura cubana.

Face ao exposto, não restam dúvidas de que a Organização das Nações Unidas acaba de dar honras de palco ao legado hipócrita da ética camarada. Na verdade, como é que um país que não respeita minimamente os direitos humanos pode ser eleito para um conselho que tem por missão velar para que os mesmos sejam cumpridos?!

A nível português, também é previsível que a hipocrisia da ética camarada dite a lei. Por isso, é de esperar que os partidos populistas de esquerda, sempre tão apostados na defesa dos direitos humanos, se abstenham de tecer qualquer crítica relativamente à eleição da Venezuela para o Conselho dos Direitos Humanos da ONU.

Menos provável é que fiquem calados face à eleição do Brasil de Bolsonaro para o órgão. A solidariedade para com o camarada Lula pode obrigar a pegar no megafone. Em nome dos direitos humanos. Óbvia e hipocritamente.