O sistema bancário português (e para sermos rigorosos, o espanhol, o italiano, o grego, o holandês, etc…) continua a servir-nos notícias do seu colapso aos poucos. Agora é a Caixa Geral de Depósitos que (se diz) necessita de 4 mil milhões de euros. Mas estamos a falar depois de notícias semelhantes relativas a quase todos os outros bancos e, por isso, uma coisa destas já nem deveria ser notícia. Nem o montante será, proporcionalmente e comparando com o BES e o BANIF, surpreendente. O que é verdadeiramente surpreendente é a forma como nós, contribuintes portugueses, estamos a olhar para isto e a dar como bom aquilo que nos estão a “vender”. Não sei se o meu caro leitor já fez as contas, mas, assim por alto, já lá vão uns 20 mil milhões de euros e três bancos. Não será altura de se perguntar porquê e para quê?

Entre as funções sociais de um banco está a chamada intermediação. Canalizar dinheiro de onde não é preciso, para onde é preciso. Para tal pagam a quem tem dinheiro disponível, depósitos, e emprestam a quem precisa, o crédito. Até aqui parece-me que toda a gente percebe, o problema parece vir na compreensão das outras funções sociais associadas. Assim, vamos a isto.

O dinheiro representa trabalho já feito. A única razão pela qual podemos chegar a um sítio com uma nota de 10 euros para comprar uma coisa que valha 10 euros é que, por baixo daquele papel, ainda por cima estampado com mau gosto, há 10 euros de trabalho. Com aquela nota eu posso comprar algo que incorpora 10 euros de trabalho, ou posso dizer a alguém que me dê 10 euros do seu trabalho. Eu troco 10 euros de trabalho já feito por 10 euros de trabalho já feito ou por fazer. Parece óbvio, certo? Então, se somar todas as notas, e moedas, de euro isso representa o trabalho já feito pela economia da zona euro desde o início dos tempos.

Então, onde é que estão as notas que vão representar o trabalho que vamos fazer amanhã? Pois, não estão. Quando as empresas e as pessoas vão ao banco pedir crédito para pagar o trabalho de amanhã, os bancos vão precisar de dinheiro que, em princípio, pode não existir. E vão ao banco central pedir dinheiro, depois de terem esgotado o recurso de pedir aos clientes e aos outros bancos. O banco central, se não tiver dinheiro depositado dos outros bancos, então imprime. E o trabalho de amanhã já tem uma representação em dinheiro, depois do banco central imprimir, emprestar ao banco (a uma taxa mais alta que os outros bancos) e o banco, por sua vez, emprestar à empresa ou à pessoa. Ou seja, não só os bancos canalizam dinheiro de um lado para o outro, como vão à fonte garantir que este é emitido quando é preciso. Portanto, os bancos também regulam a emissão de moeda por meio do crédito, de forma a que associado a cada nota de 10 euros, estejam mais 10 euros de trabalho.

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Acontece, porém, que isto não é assim tão linear. Por vezes, o crédito não é bem-sucedido. Isto é, o banco empresta com a perspetiva de ser pago, mas o trabalho realizado não vale os euros consumidos e o cliente não paga. O que acontece nesta situação? O dinheiro “perdeu-se”. Mas o banco não pode ir dizer aos depositantes que perdeu o dinheiro deles. Logo, terá que ir ao banco central pedir para imprimir mais dinheiro para compensar a perda. E é aqui que a coisa se torna mais complicada. Se o banco central imprime mais dinheiro, isso não sai de borla às pessoas. Como vai imprimir mais dinheiro só para compensar a perda, todo o outro dinheiro passa a valer menos, porque vamos ter uma maior quantidade de dinheiro a representar o mesmo trabalho. Isto é, quem paga é o contribuinte que vê o seu dinheiro a valer menos.

Agora que entendemos mais alguma coisa da função social dos bancos, vamos tentar reinterpretar algum do ruído mediático. Há uns meses, um senhor num trabalho jornalístico (?) com enorme sucesso nas redes sociais, escandalizava-se com o facto de os bancos terem acumulado 40 mil milhões de euros de perdas em 8 anos. Se pensarmos que o trabalho colocado na economia portuguesa nesses 8 anos foi de 1,6 milhões de milhões de euros (aproximadamente o PIB de 8 anos), estamos a falar de os bancos terem “perdido” 2,5% de todo o dinheiro que canalizaram. Correspondente a metade da inflação nesses 8 anos ou metade do défice do Estado. Por isso, pelo número global podemos perceber que não existe um problema assim tão grande em termos económicos, já que os bancos são a única forma de canalizar dinheiro na sociedade. Ou daquele que já existe, ou daquele que vai buscar à fonte.

Mas a parte divertida começa agora. Para que o contribuinte não fosse obrigado a pagar estas perdas, sublinho, para proteger o contribuinte, os reguladores encontraram um esquema retirado da mais pura pseudociência: os níveis mínimos de capital. Escreveram uma lei em que um banco só poderia emprestar até um múltiplo daquilo que são os seus capitais próprios, isto é, o dinheiro que os acionistas lá empenharam. Isto até parece lógico, não fosse um completo absurdo. E é um completo absurdo porque sendo lógico que se estabeleça um nível mínimo, ele varia no tempo em função da normal dinâmica da economia, umas vezes mais alto, outras mais baixo, pelo que nunca poderá ser escrito num papel. O problema é que alguém escreveu o mínimo de capital. Ninguém sabe porquê, porque ninguém questiona o valor, mas alguém escreveu 8%. E veio a troika e escreveu 10%.

Os bancos, no início, esfregaram as mãos de contentes. Afinal, com leis assim nunca mais ninguém conseguiria entrar no mercado deles. À medida que os tempos foram correndo, a dificuldade de garantir esses mínimos levou a sucessivas fusões e, porque não apareciam novos bancos, a uma concentração ainda maior. Até ao estado de coisas a que chegamos hoje.

Agora vamos cair num disparate em que o contribuinte vai meter mais 4 mil milhões de euros num banco, depois do regulador já ter destruído três deles, para proteger o contribuinte de perder dinheiro! Dinheiro que não vai servir para nada, senão satisfazer a fúria rentista de um regulador absurdo que acha que a CGD é um banco menos seguro por isso. A desculpa “B” é que estamos a proteger o depositante. Como vimos acima, isso é conversa de treta, o depositante é defendido automaticamente se o banco central se comportar como qualquer banco central se comportou ao longo da história. Mas agora as autoridades europeias falam em penalizar o depositante acima de um dado valor, se esse mínimo de capital não estiver presente. Ou seja, o contribuinte tem que meter dinheiro para defender o contribuinte e o depositante tem que ser penalizado para proteger o depositante. Se alguém se dedicasse a escrever uma oração à Senhora da Asneira, dificilmente faria melhor.

Há formas alternativas de estabelecer mínimos de capital, sem os escrever. Basta não entregar um sistema fundamental para a economia, como é o bancário, à crendice e à pseudociência. O contribuinte português vai meter os 4 mil milhões de euros na CGD que não servem para nada senão para tornar-nos a todos mais pobres e para satisfazer uma nomenclatura estalinista no BCE. E para ser mais um prego no caixão do euro.

A gestão da CGD, essa, vai ficar mais descansada porque vai deixar de aturar os sacerdotes do BCE. Os clientes, que somos nós, não vão ganhar nada com isso porque a CGD, como o resto do sistema bancário, continua tão segura hoje como foi há 30, há 20 ou há 10 anos. Pelo menos enquanto os devotos da Senhora da Asneira não acharem que devem deitar o banco abaixo para nos proteger.

PhD em Física, Co-Fundador e Partner da Closer