As curvas e contracurvas do processo Brexit têm levado a uma enorme confusão sobre o que é, afinal, a democracia. Estão em permanente choque dois modelos: o da democracia representativa e aquele a que se convencionou chamar “democracia participativa” (entre muitas aspas, porque esse tipo híbrido de regime não será propriamente democrático). Também se pensa muitas vezes que um é complementar ao outro, mas, na verdade, são mutuamente exclusivos. Ora veja-se o caso da Grã-Bretanha e o resultado desta mistura muito pouco saudável.

A democracia representativa deve definir-se, mais coisa menos coisa, da seguinte forma: periodicamente, os cidadãos são chamados às urnas para escolher um grupo de outros cidadãos que os vão representar durante a legislatura seguinte. Como se diz na gíria, nesse particular, o povo é soberano. Até a legislatura acabar, estes representantes têm como principal obrigação defender os interesses do seu círculo eleitoral em equilíbrio com os interesses nacionais. Se falharem serão punidos no novo ciclo eleitoral. Poderão argumentar que as coisas não são bem assim. Mas são. Estudos comprovam que o governo incumbente, em condições normais, está mais apto a ganhar eleições. Se as perde, é porque não foi capaz de corresponder às expectativas dos que o escolheram.

Nada disto faz sentido se se misturar com a dita “democracia participativa”. Trata-se grosso modo de uma interpretação da vontade da maioria, através de instrumentos mais ou menos rigorosos dos quais importa destacar os referendos e as decisões dos chamados “líderes carismáticos”. Vale a pena demorarmo-nos um pouco nestas duas formas de tomada de decisão.

É muito frequente argumentar que não há forma de democracia mais pura que auscultar a vontade popular através de consultas públicas. Mas é precisamente por aí que começam problemas. As questões referendadas exigem, em determinados casos, conhecimentos técnicos multidisciplinares que as populações não têm. Não se trata de ignorância nem de falta de interesse por parte dos cidadãos. São questões profundamente complexas e de consequências mais ou menos imprevisíveis, que não permitem, pela sua própria natureza, um voto informado. Assim, chamados a votar, os cidadãos escolhem emocionalmente e com base nas suas mais variadas experiências de vida. Os resultados ficam, pois, ao sabor do acaso, ou do lado quem melhor souber manipular os assuntos a seu favor.

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Muitas vezes, estas campanhas referendárias são dirigidas por “líderes carismáticos”. O que os distingue dos restantes, explicou Max Weber exatamente há cem anos atrás, é que a sua autoridade está dependente da sua mensagem: o que dizem tem de gerar um profundo sentimento de aceitação no seio das sociedades para que tenham legitimidade suficiente para reconstruir instituições. Agora, o problema do carisma é que a mensagem pode ser responsável e a herança a prazo positiva, ou, pelo contrário, por muito atraente que a mensagem seja, pode ter consequências nefastas a prazo.

O Reino Unido orgulha-se de ser a mais antiga democracia do mundo. Ninguém lhe tira os pergaminhos de antiguidade, mas o conceito já não é o que era. Até porque um dos maiores erros políticos das últimas décadas foi misturar a democracia representativa com a democracia participativa.

Primeiro David Cameron: no manifesto eleitoral dos Conservadores, em 2015, anunciava a realização de um referendo que determinasse se o Reino Unido se manteria ou não na União Europeia. O primeiro-ministro terá acreditado que o remain venceria. Talvez fosse muito cedo para perceber o que todos sabemos hoje: que muitas sociedades europeias estão profundamente polarizadas e uma consulta popular, nestes contextos, torna-se a exercício de protesto emocional contra o estado geral das coisas. Quem o percebeu foram os líderes carismáticos britânicos, entre eles Nigel Farage (líder do Partido do Brexit, que ganhou as eleições para o Parlamento Europeu) e Boris Johnson (atual primeiro-ministro) que associam promessas infundadas de um futuro (muito) melhor à saída do Reino Unidos da União Europeia.

O resultado do referendo de 2016 foi o que se conhece. Mas, para o implementar, era preciso voltar a recorrer à democracia representativa, ou seja, ao parlamento. Rapidamente se percebeu que uma decisão de Westminster seria difícil. Por três motivos: os membros do parlamento, na sua maioria, são remainers, pelo que a implementação do Brexit seria sempre um exercício difícil; porque, num conjunto importante de casos, havia um choque direto entre a vontade dos constituintes e dos representantes, o que deixava os últimos num dilema; e porque o próprio parlamento estava profundamente dividido quanto à forma de implementar o referendo. As diferenças de perceção dos MPs sobre que modelo serviria melhor os interesses britânicos são tão grandes, que nunca foi possível chegar a um consenso. Tomou-se uma decisão fundamental para o futuro britânico sem planear o que se seguiria ou pensar nas consequências. Quando é assim, a possibilidade de se chegar a um beco sem saída aumenta significativamente.

A incapacidade das instituições de responder ao Brexit, depois de muitas tentativas falhadas, levou ao que terá sido uma escolha desesperada: Boris Johnson.

Johnson é o típico “líder carismático” que diz exatamente o que os britânicos querem ouvir – há diversos perfis do primeiro-ministro que demostram que é, sobretudo, um sobrevivente político com poucos escrúpulos no que respeita à manipulação da verdade e às mudanças bruscas de opinião e rumo político – com especial apetência para pensar mais em si e nos seus próprios interesses do que nos dos britânicos.

Johnson usou a sua própria conceção de democracia (participativa) para suspender o parlamento tentando fazer-se eleger a tempo de protagonizar uma saída sem acordo. Saiu-lhe o tiro pela culatra; os representantes (usando o seu conceito de democracia) negaram-lhe essa ambição, o primeiro-ministro negou-lhes o dever temporário de representar.

Tem-se escrito muitas vezes que o Reino Unido está a pagar o preço por não ter uma constituição. Há motivos mais profundos: a tensão entre dois regimes com nomes parecidos mas intenções muito diferentes. Que se reconheça quanto antes para que se façam esforços para repor a normalidade (em Londres) e para evitar derivas semelhantes (onde ainda é possível) noutros estados demoliberais.