O espaço e o território podem ser apropriados e representados de muitas maneiras. O modo dominante é a mercantilização do espaço e a economia de mercado diretamente ligado ao direito de propriedade. Outros modos existem como a memória e herança patrimoniais, a salvaguarda de património natural em áreas de paisagem protegida, mas, também, as artes e a cultura nas suas diversas expressões artísticas e culturais, todas eles coadjuvados, em maior ou menor escala, pelas ciências e tecnologias.

Ora, numa era de Grandes Transições – climática e energética, ecológica e alimentar, demográfica e migratória, tecnológica e digital, social e laboral – é tempo de reinventarmos a harmonia necessária entre a justiça social e a justiça ambiental, ou seja, de reinventar uma outra geografia humana, desta vez pela reconciliação entre o património e a paisagem, a arte e a cultura, a ciência e a tecnologia. Para isso, vamos deixar de ser apenas consumidores, utentes ou clientes e aceitemos ser, também, cuidadores, criadores e curadores de todo o ambiente, natural e cultural, que nos rodeia tirando partido de todas as nossas faculdades intelectuais e criativas que estão ao nosso dispor. Se assim fizermos, é todo o processo criativo que se abre à nossa frente, em particular a forma como ordenamos, ocupamos e lidamos com o espaço e o território, se quisermos, como criamos uma genuína poiética do espaço e do território.

Neste contexto importa não esquecer nunca que a lei de ferro do capitalismo continua a ser a privatização do benefício e a socialização do prejuízo e o rol de deseconomias externas que atingem a natureza ambiente e a natureza humana. É esta lei de ferro que legitima o imperativo ético de uma harmonia absolutamente necessária entre justiça ambiental e justiça social, assim como a beleza intrínseca do ato criativo que transforma o património e a paisagem, a arte e a cultura, a ciência e a tecnologia, em forças de combate contra as externalidades negativas da economia financeira extrativista do capitalismo global.

Com efeito, as deseconomias externas do capitalismo global atingiram hoje um limiar intolerável de impacto sobre a natureza ambiente e sobre a natureza humana. Aliás, estas deseconomias externas só são compatíveis com as regras da democracia porque a retórica política dominante, na sua alternância governativa, promete, a todo o tempo, maior moderação e adaptação nos impactos dessas externalidades negativas que nós, cidadãos comuns, vamos consentindo por via do benefício da dúvida.

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Quero, porém, insistir na minha tese: a harmonia absolutamente necessária entre a justiça social e a justiça ambiental só será possível se deixarmos de ser apenas consumidores, utentes ou clientes e aceitarmos ser, também, cuidadores, criadores e curadores de todo o ambiente que nos rodeia e agirmos sobre a sua arquitetura fundamental. Aqui chegados, a pergunta nuclear é simples de enunciar: face às externalidades negativas e à socialização dos prejuízos da economia dominante como é que podemos desencadear um processo criativo complexo, uma poiética do espaço e do território, que nos reconcilie com a natureza ambiente e a natureza humana?

Em plena era do Antropoceno, em que as alterações climáticas e ecológicas têm uma origem e marca humanas, as externalidades negativas do capitalismo global e a socialização dos seus prejuízos são o problema político por excelência do nosso tempo.  Olhemos, então, para o nosso espaço-território de uma perspetiva mais sistémica e transdisciplinar e procuremos inverter a ordem dos termos que ocupam esse domínio, ou seja, alterando a posição relativa das nossas apropriações e representações do espaço-território. A lista que se segue forma uma matriz de perspetivas e escalas de observação que considero fundamentais para compor uma poiética do espaço-território, o quadro necessário para desencadear uma série de atos criativos de delimitação, definição e produção de um espaço-território mais compósito e complexo:

  • Os sistemas produtivos locais e a função das produções com DOC e IGP,
  • As áreas de paisagem protegida e a natureza dos seus sistemas de gestão,
  • Os mitos e os lugares de culto e peregrinação,
  • A memória histórica, os roteiros e narrativas do património cultural,
  • As paisagens literárias, a historiografia e a toponímica local, as aldeias históricas,
  • Os terroirs vinhateiros e os montados alentejanos como espaços criativos,
  • A arquitetura e a qualidade do espaço público urbano, periurbano e suburbano,
  • A arte pública e ecológica e sua articulação com os bens comuns da economia circular,
  • Os geossistemas agroflorestais e paisagísticos e bens comuns das economias de rede,
  • Os eventos ICC, as interligações e as redes entre eventos e comunidades municipais.

Quero crer que os valores patrimoniais e paisagísticos, valorizados pela arte e a cultura e coadjuvados pela ciência e a tecnologia irão promover cadeias de valor eticamente e socialmente responsáveis e, progressivamente, disputar a supremacia da economia financeira global e moderar e reverter as suas externalidades negativas. Neste sentido, disciplinas como a arquitetura paisagística, a engenharia biofísica, a economia ecológica e a agroecologia apoiadas pelas tecnologias digitais e a smartificação do território, podem-nos reconciliar com o ato criativo e a poiética do espaço e do território impedindo, assim, que se formem e acumulem as externalidades negativas que uma economia de mercado extrativista e produtivista costuma despejar sobre o ambiente e os contribuintes.

Notas Finais

Património e paisagem, ciências e tecnologia, artes e cultura, estamos, digamos, na fase da difusão e da profusão e ainda não fomos capazes de mobilizar estes três conjuntos de recursos em modo ordenado e com uma intensidade-rede suficiente. E porque não olhar para o espaço-território como se fosse uma obra de arte sempre inacabada, tal como nós próprios? Recorro, a propósito, a uma referência da Rede Portuguesa de Arte Contemporânea quando diz “trata-se de aproximar as diferentes comunidades do território nacional à arte e cultura contemporâneas, contribuindo para o aumento dos públicos e a sua fidelização, de promover a mobilidade dos artistas, curadores e demais atores do meio das artes contemporâneas, de promover programas de apoio à programação em rede e fomentar dinâmicas de inter-relacionamento das práticas artísticas e de investigação nestas áreas, de estimular projetos pluridisciplinares nacionais e internacionais, nomeadamente através de exposições, performances, seminários e conferências, de incentivar programações culturais que possam ser coproduzidas em rede e em itinerância”.

Esta referência é plena de ensinamentos práticos no que diz respeito à programação e planeamento de um território: aproximar comunidades do território nacional, lançar projetos multidisciplinares, promover a mobilidade de artistas e curadores, aumentar os públicos e a sua fidelização, programar artes performativas e eventos das indústrias culturais e criativas (ICC) e realizá-los em coprodução e itinerância.

Para o efeito, os contributos são muito variados. Pensemos, por exemplo, no plano nacional das artes e na itinerância das coleções de arte pelos inúmeros centros de arte contemporânea já hoje existentes em Portugal.

Pensemos, por exemplo, no programa nacional de educação estética e artística e na itinerância dos artistas plásticos portugueses pelos municípios e escolas do país, dirigindo e orientando a produção de obras de arte pública, sem esquecer, em tempo de alterações climáticas, a especial relação da arte pública com as boas práticas da economia circular. Pensemos, por exemplo, na associação das aldeias históricas de Portugal aos programas de educação estética e artística e na itinerância de um programa nacional de instalações artísticas e culturais que celebrem a beleza natural dessas aldeias.

Pensemos, por exemplo, no programa de bibliotecas escolares e no plano nacional de leitura e na itinerância de muitos escritores portugueses, não só explicando as suas obras literárias como descrevendo e revisitando algumas paisagens literárias dos nossos maiores escritores. Mas, também, na itinerância de um programa de divulgação das grandes obras cinematográficas e, ainda, em sessões explicativas de pequenos documentários sobre a arte e a cultura dos territórios.

Pensemos, por exemplo, na rede portuguesa de museus e na organização de visitas guiadas a vestígios arqueológicos e a monumentos nacionais como formas privilegiadas de explicar aos mais novos a história e a cultura portuguesas. Pensemos, por exemplo, na arte sacra e nos inúmeros lugares de culto e peregrinação espalhados pelo país e à itinerância que lhe está associada, seja em celebrações ou visitas guiadas.

Pensemos, por exemplo, nos centros de ciência viva e nos centros interpretativos e na itinerância que lhes está associada, que os nossos cientistas podem protagonizar, em tudo o que diga respeito aos endemismos locais, às ocorrências geológicas, às boas práticas ambientais e florestais, tendo em vista proteger os habitats e ecossistemas existentes. Pensemos, por exemplo, nos terroirs portugueses que alimentam o turismo em espaço rural e em algumas marcas Unesco como a dieta mediterrânica e teremos mais um motivo para visitar os territórios do chamado país do interior.

Ou seja, doravante, teremos muitas vias abertas para levar a bom porto a fusão do processo criativo com os sistemas produtivos locais. É desta cultura de fusão que emergirá a poiética do espaço-território.