Vivemos todos envoltos no mito de que a história se repete. Se, por um lado, os paralelismos são úteis para quem estuda política, por outro, quem revisita a história com frequência já percebeu que as coisas não são bem assim. Há ciclos de crises – pela simultaneamente simples e complexa razão de que os modelos políticos e económicos se esgotam – e, como a natureza humana não muda assim tanto, há semelhanças entre estes ciclos. O presente tem a vantagem de ter consigo lições do passado e a desvantagem de trazer desafios novos que requerem imaginação política para os solucionar.

Posto isto, a ideia que a história se repete – em versão melhorada – tomou conta da vida pública. Estamos numa era em que os sentimentos coletivos ganharam um lugar no pódio político. A verdade é que uma condição cada vez mais essencial para ganhar eleições é saber manipular esses sentimentos a favor de determinada candidatura.

É neste contexto que entra o nacionalismo. Como já foi sugerido noutros artigos, o nacionalismo em si só não é o problema. Foi (e em alguns casos ainda é) um aliado precioso da democracia. E até foi, em tempos, aliado do abandono do protecionismo rumo aos mercados livres. Foi uma ferramenta essencial para a autodeterminação dos povos ou para a manutenção de identidades de nações subjugadas por impérios que, quando libertadas, tinham um guião para seguir. O mau uso do nacionalismo também tem dado azo a atrocidades – guerras civis, massacres – e a péssimos resultados políticos, como os repetidos sucessos eleitorais (em contexto democrático) e a legitimação (em contexto autocrático) de líderes pouco interessados em questões relacionadas com o liberalismo, a paz, a cooperação internacional e os direitos humanos.

O que demostra que o nacionalismo em si – o apego coletivo a uma identidade nacional com um conjunto de manifestações materiais e imateriais de pertença – é altamente plástico e permeável ao que as elites (ou outsiders aspirantes a elites) fazem dele. Por outras palavras, o nacionalismo é uma ideologia que requer uma narrativa particularista. E essa narrativa pode ser manipulada e alterada de formas muito convincentes, consoante o contexto e o objetivo político que cada qual quer obter.

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Um economista e uma cientista política italianos encontraram uma regularidade relacionada com o nacionalismo contemporâneo: a nostalgia. Ora, no que se refere ao nacionalismo nostálgico, o sentimento funciona como uma espécie de utopia tão inalcançável como as visão de um futuro perfeito que deixaram marcas profundas no século XX. Líderes políticos (geralmente populistas) recorrem a visões idealizadas do passado para convencer eleitores e cidadãos a deixarem-nos fazer o que bem entendem para alcançar um objetivo inalcançável.

Exemplos? Tornar a América grande outra vez, Rejuvenescer a China, fazer ressurgir a Rússia à (grandiosa) maneira czarista, desenvolver uma política externa neo-otomana. No caso dos países europeus (tirando o Reino Unido cuja nostalgia está diretamente relacionada com o Brexit), a utopia é mais modesta: estados-nação sem imigrantes onde a cultura, ou melhor, a civilização europeia possa desenvolver-se e prosperar. Bem como o regresso aos anos dourados do estado-providência seguro, do emprego para a vida, e da segurança económico-financeira (tudo roubado pela entidade abstrata “globalização” e a pela entidade concreta “refugiado” e “migrante). É um discurso familiar, não é?

Explicam Edoardo Campanella e Marta Dassù que a narrativa do nacionalismo nostálgico se constrói em três passos. Quando os estados se encontram em momentos de crise, apela-se a recordações (falseadas) de uma determinada “época dourada”. De seguida, apontam-se razões e bodes expiatórios que foram necessários para “fazer uma grande rutura” que separa o passado idílico do presente incómodo. Diagnosticadas as causas, engrandece-se o “descontentamento com o presente”, para prometer – e nunca cumprir, porque é impossível – o regresso a uma era dourada com tons modernos e tecnológicos.

As utopias têm pernas curtas, mas são perigosas porque transformam profundamente o mundo em geral e os estado em particular (quando o resultado não é bem pior). O Brexit é o exemplo disso. Quando o Reino Unido perceber que a soberania, para usar terminologia em voga, não traz nem maior riqueza, nem restaura o orgulho nacional, e muito menos repõem a grandeza do passado, provavelmente, já será tarde demais para voltar atrás na separação com União Europeia. Quando a Europa perceber que a questão demográfica estrutural só se resolve com medidas de imigração controlada poderá ser muito tarde para restabelecer o estado social. Isto para não falar de todas as consequências, digamos, colaterais, destes processos: menos liberdade, mais controle, menor qualidade da democracia.

É difícil falsificar a narrativa nostálgica. É muito penosa a tarefa de desconstruir meias verdades, ainda mais se estas meias verdades foram música para os ouvidos de uma parte da população. Mas há coisas que se podem fazer. Desde logo, deixar respirar um nacionalismo moderado e inclusivo. Não há nada de errado com o sentimento de pertencer a uma comunidade nacional, nem nada de incompatível com o apego a outras ideologias. Os EUA têm sido dos estados simultaneamente mais patrióticos/nacionalistas e liberais/individualistas da história. Segundo, é preciso desenvolver narrativas concorrentes assentes em factos. Para isso, as elites políticas terão de ter um cuidado especial em fazer promessas exequíveis e cumpri-las. Finalmente, é preciso que se recupere a confiança nas elites. Os mensageiros da nostalgia têm a vantagem de se apresentar como outsiders, fora das malhas das tradicionais elites políticas e económicas, cuja reputação anda pelas ruas da amargura. E a mensagem (falsa) beneficia de um mensageiro sem antecedentes políticos expressivos – o que lhe dá muito mais força.

É uma tarefa fácil? Não. Mas o que está em jogo é demasiado importante para que não haja coragem política para tentar. O preço a pagar pela inércia é muito, muito elevado.