Aos políticos tudo é pedido, da paz perpétua ao saneamento básico. Aos presidentes da Comissão Europeia, em especial, é dada uma folha em branco com a exigência de que definam os termos do cargo que ocupam. Por consequência do irresolúvel equilíbrio de poderes entre a União Europeia e os Estados que a compõem, só é dada a folha, sem nada que permita o seu preenchimento.

Desde 1957, a posição tem sido ocupada por todo o tipo de homens, de estadistas a amanuenses, mas a atual presidência, a cargo de Ursula von der Leyen, tem como raison d’être a negação desse paradigma. Logo que começou, para justificar a nomeação de uma ministra impopular no seu país e desconhecida fora dele para o cargo mais importante da União Europeia, as inestimáveis “fontes” apressaram-se a assegurar que tudo fazia sentido, porque se tinha escolhido uma mulher e nunca uma mulher tinha presidido a Comissão Europeia.

Ultrapassando a falta de seriedade nessa justificação oficiosa, o raciocínio merece simpatia: 60 anos de hombridade não foram garantia de particular competência. É de saudar a autocrítica mais ou menos explícita na escolha e a vontade de tentar algo diferente numa estrutura tantas vezes criticada por ser pesada e ineficiente.

Pouco depois da improvável nomeação, von der Leyen dirigiu-se ao Parlamento Europeu para apresentar credenciais a uma instituição que tinha prometido um spitzenkandidat e acabou forçada a ratificar uma candidata que não escolheu, num momento de embaraço generalizado. O discurso foi trabalhado à vírgula até perder todo o interesse: perante uma assembleia historicamente fragmentada, a futura presidente tratou de prometer popularidade ao grupo dos populares, progresso aos progressistas e verduras aos reforçados verdes.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Um ano depois das eleições e seis meses desde que assumiu a função, von der Leyen ainda é aquilo que as suas primeiras palavras revelaram, no sentido em que é a noção da sua imensa fragilidade política a característica essencial para perceber a sua definição do cargo.

Vista como forasteira na cidade em que nasceu, nomeada in extremis pelo Conselho Europeu e aprovada por uma curta maioria parlamentar, a posição de partida nunca poderia ser de força. A isso se acrescenta a natureza do Colégio de Comissários, escolhido pelos Estados-Membros, expondo a fragmentação política do continente e contendo os destroços de candidatos falhados ao cargo, como o eterno Frans Timmermans — ao contrário de um primeiro-ministro, o presidente da Comissão Europeia não pode contar com um Conselho de Ministros obediente e leal para executar o seu plano de ação.

Como não se esperava a nomeação e era necessário garantir o seu sucesso, as prioridades para o mandato ficaram-se pela reinterpretação do legado de Jean-Claude Juncker à luz dos resultados eleitorais: a proteção ambiental, o apoio à digitalização e um reforço da posição europeia no mundo. A também improvável pandemia que surgiu nos primeiros meses de trabalho foi vista como um catalisador da História e uma janela de oportunidade para fazer avançar a agenda política mais sensível, a começar pelas prioridades ecológicas, cuja feroz oposição, especialmente a leste, parece agora ultrapassável se compensada por fundos extraordinários de combate aos efeitos do vírus. Todas as medidas de recuperação que passam por Bruxelas são pensadas ou reconfiguradas nos termos da agenda previamente definida, num esforço concertado para a implementação do programa político.

Escapando aos amargos conflitos que se desenvolveram entre os Estados-Membros que tentavam à crise responder entre si, von der Leyen optou pelo voluntarismo que a fraqueza lhe permitia e aproveitou para se desdobrar, tornando-se na presidente-telefonista, com o intuito de angariar fundos para investigação científica, ou na presidente maquiavélica, quando se tornaram públicos detalhes de um “Plano Ursula” para relançamento da economia dias antes de se conhecer a proposta franco-alemã para um Plano Merkel-Macron, conseguindo que a Comissão dominasse (temporariamente) a narrativa mediática, até ser inevitavelmente ultrapassada pelas potências que contam.

Há poucas guerras que uma Comissão Europeia pode comprar, mas nenhuma tão incomportável e autodestrutiva como um conflito com a Alemanha e a França. Não parece ser esse o seu caminho. Nem Delors, que também era ministro de uma das potências antes de ser expedido para a presidência, conseguiu formar um contrapoder autónomo ao ponto de se poder imaginar independente ou equivalente. O equilíbrio entre os Estados e a União só pode desequilibrar-se para o lado que paga as contas, por muito idealismo que a vista do Berlaymont possa trazer. Como bem explicava um dos bilhetes do embaixador Cutileiro por interposto pseudónimo: “Vista na bola de cristal de Bruxelas, a Europa é um todo harmonioso; vista de cada um dos seus microclimas, é uma Babel desenfreada”. Ao anunciar uma proposta de €750 mil milhões para relançar as economias depois de a entente franco-alemã ter sugerido €500 mil milhões, fica evidente que a disputa não é pelo poder em si, mas pela perceção de que ele existe na Comissão.

Com a crise vírica, a característica distintiva de Ursula von der Leyen deixou de ser a sensibilidade aguda da sua fragilidade, traço comum a vários antecessores, para passar a ser o seu desconforto com essa circunstância e a crença de que pode mudar o seu destino apenas pela força da sua vontade e as chamadas telemáticas que for acumulando. Os contornos do cargo e os limites do seu poder estão ainda diminuídos pela difícil posição de partida e a ausência de sucessos que a reforcem, mas é claro o desejo de escapar a um mandato de anonimato. A toda a vontade juntar-se-á a possibilidade de distribuir todo o dinheiro que a França e a Alemanha consigam angariar. Mais do que uma adversária das potências na repartição do poder, von der Leyen parece disponível para ser uma figura sob tutela se isso significar respaldo quando quiser aparecer sozinha em palco.

Vários artistas explicaram ao longo dos tempos o pânico provocado pelas hipóteses de uma folha em branco. Tudo se lhe pode fazer e a passagem do tempo aumenta-lhe o peso com a pressão de lhe fazer qualquer coisa. Feitas as contas, a folha em branco destruiu mais carreiras do que as que construiu, mas poucas vezes terá uma caneta de €500 mil milhões caído numa secretária. Deus ex machina?