Comecemos com segurança: Donald Trump é o presidente dos Estados Unidos da América, um feito extraordinário para um homem sem experiência política ou a mínima inclinação para se assemelhar a um político experiente. Partindo dessa premissa insólita, os anos da sua presidência podem ser entendidos como um grande acontecimento mediático – multimédia, aliás, da televisão aos jornais e sempre com um pé no Twitter –, extraordinário por conseguir manter a política no centro das atenções de uma sociedade distraída.

Como recordou Bruno Cardoso Reis na semana passada, o sucesso dessa proposta política não será totalmente alheio à cultura peculiar do país de Hollywood, do cabo e das redes sociais. Num exercício de justificação do passado, a narrativa da estrela televisiva que vai acumulando publicações virais até chegar à presidência, parece fazer sentido como uma espécie de calamidade latente, que os guardiães da democracia deviam ter previsto e evitado.

Essa cândida e divertida explicação alcançou surpreendente popularidade, o que nos merece alguma tolerância. Os últimos quatro anos parecem ter produzido momentos históricos a uma velocidade difícil de acompanhar, afetando as estruturas do consenso que se tinha formado nas elites americanas e ocidentais em torno das democracias liberais de pendor progressista. A eleição de Trump, a crise dos refugiados e o resultado do referendo ao Brexit interromperam a gestão do declínio que se tinha tornado o padrão na condução das grandes nações e exigiam razões.

Enquanto o mundo avançava, para o bem e para o mal, uma aldeia irredutível de gauleses e vizinhos manteve-se largamente isolada, guardando o legado de um tempo que desaparecia repentinamente. A Europa não se deixou morrer ou mudar, pelo menos não como se esperava, seguindo a corrente para um sítio novo. Para a União Europeia, a que sobrou, os últimos quatro anos serviram para o mais ambicioso período de reacionarismo de que há memória. Se alguma coisa, o trauma de um mundo que se tornava adversário do “projeto” veio dar força ao federalismo, aos mais europeístas dos europeístas, que ainda neste verão reclamaram a vitória simbólica de um momento (alegadamente) hamiltoniano.

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A eleição de Emmanuel Macron para a presidência francesa, logo em 2017, na sequência de uma campanha que forçosamente se tornou um referendo ao status quo, da União Europeia à V República, foi o primeiro sinal de que a Europa, para lembrar uma fã, “was not for turning”. Enquanto os progressistas americanos tomavam as ruas e as redes para expressar a sua profunda consternação com as várias manifestações do trumpismo, a União Europeia foi, progressivamente, assumindo o seu lugar como organismo internacional da “Resistência”, num estado de permanente incompreensão e desprezo pelo presente.

O sentimento foi recíproco. Das referências à “morte cerebral” da NATO, pelo lado europeu, à igualmente extraordinária declaração de Trump sobre como a Europa estaria a ser “tão má como a China” em matéria comercial, dificilmente a relação atlântica podia encontrar um ponto alto. Essa crise não é nova e provavelmente podemos encontrar o seu início na dissolução da União Soviética, que fez desaparecer o inimigo comum e acrescentou metade da Alemanha à União Europeia (que ganha esse nome precisamente em 1992).

Nos últimos 30 anos, com presidentes republicanos e democratas, a Europa foi-se afastando da América: primeiro, nas intervenções militares, que nunca reuniram consenso amplo que Washington devia ter procurado; depois, desde Obama, pela política internacional que deixou de contar com os europeus e partiu para a Ásia, lá encontrando um insucesso esmagador. Não é previsível que o vencedor das eleições de novembro assuma prioridades geográficas originais, mas é quase impossível que os próximos quatro anos tragam estabilidade. Ainda assim, aqueles que defendem que o futuro não trará um regresso a 2008 soam menos perspicazes do que julgam. Não é para aí que se quer recuar, porque nem sequer há a ideia de que esse tenha sido um grande momento. Na verdade, a crise desse ano e as reações que lhe seguiram podem ser entendidas como mais um momento em que os interesses (e os bancos) europeus e americanos se aproximavam enquanto os seus políticos divergiam.

Em 2020, as perspetivas são outras. Pensemos no cenário de uma nova vitória do presidente Trump, mais uma vez derrotando democratas e sondagens. Livre de cálculos eleitorais e amarrado à sua personalidade, a força de um segundo mandato poderá aprofundar o conflito comercial, sobretudo pelo ataque aos “carros alemães”, e reforçar o apoio aos poucos governos europeus politicamente alinhados, sobretudo na Hungria e na Polónia – atendendo à localização de algumas fábricas, não é impossível que ambas as hipóteses venham a conviver com alguma tensão. Assumindo que o centro permanece unido depois das eleições na Alemanha e na França, o europeísmo continuará a parecer uma questão de sobrevivência e isso deixará a União cada vez mais sozinha no mundo, fechada em si e num tempo que passou.

A possibilidade de uma vitória de Joe Biden, hipótese mais provável, tem sido recebida com compreensível ceticismo continental. Tendo aprendido a viver com a hipótese de uma América ausente, os poderes europeus encontram-se agora num equilíbrio difícil, em que a vontade de ver uma alternativa ao presidente Trump não se traduz em otimismo ou num apoio mais ou menos público ao candidato que se lhe opõe. Essa desconfiança pode ser exagerada. Um presidente Biden será mais um democrata liberal de pendor progressista que, ao olhar à sua volta, encontrará poucos aliados ideológicos. Com a China numa posição mais forte do que aquela em que se encontrava em 2016 e as instituições multilaterais muito menos dependentes da liderança americana, a proximidade com o velho aliado, que ajudou a construir o mundo que ambos pretendem reabilitar, pode ser a via mais apelativa para todos.

A três semanas das presidenciais americanas, a grande história parece ser o desinteresse europeu perante a hipótese de substituição de Trump por uma figura do mundo de ontem. Quatro anos de militância contrarrevolucionária convenceram-nos de uma necessidade prática de autossuficiência, mas essa ideia é um erro. Em nenhum cenário realista a União vai sobreviver apenas por si num mundo hostil. A Europa faz bem em preferir Biden, mesmo que timidamente, mas não pode continuar convencida de que conseguirá parar o mundo em 1992. É para aí, não para 2008, que o projeto europeu está a tentar voltar, tal como é sozinho e não dependendo de um novo presidente americano que está a tentar fazê-lo. Infelizmente para os reacionários, a realidade não admite resistências.

João Diogo Barbosa, jurista (@jdiogospbarbosa no Twitter), é um dos comentadores residentes do Café Europa na Rádio Observador, juntamente com Henrique Burnay, Madalena Meyer Resende e Bruno Cardoso Reis. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00 e às 22h00. 

As opiniões aqui expressas apenas vinculam o seu autor.

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