No início dos anos noventa, duas advogadas americanas, Ellen Alderman e Caroline Kennedy, publicaram um livro que em breve se tornou num best-seller: “The right to privacy”, em que as autoras passavam em revista diversas abordagens do tema, como a protecção da privacidade em casos de abuso policial, violação pelos media no local de trabalho, o voyeurismo permitido pela sociedade de informação.

Recordei este livro, porque talvez algumas das mais interessantes páginas são aquelas em que Alderman e Kennedy analisam o que designam por “t right to be left alone”. Não se tratava de uma absoluta novidade. A expressão já aparecera ainda no século XIX, em 1890, num “paper” publicado por Samuel Warren e Louis Brandeis, mais tarde juiz do Supremo Tribunal Federal. Segundo eles, uma invasão de privacidade causa danos que só parcialmente são físicos. “Pensamentos, emoções e sentimentos também exigem protecção pela lei.”

A doutrina demorou quase 60 anos a identificar o que devia merecer a tutela da lei em matéria de protecção da privacidade: intromissão não consentida; divulgação pública de assuntos privados; utilização e falsa qualificação por terceiros (nomeadamente os media) da imagem, nome ou atributos dos visados; e apropriação, o uso da identificação de uma pessoa para retirar vantagens lícitas ou ilícitas sem consentimento daquela.

Durante todo o século XX, na ordem jurídica das democracias de ambos os lados do Atlântico a questão da tutela da privacidade foi levantada, tanto em casos de violação pelo Poder Público como por abuso por privados, muitas vezes obrigando ao recurso aos tribunais que até hoje não produziram uma jurisprudência uniforme.

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Mas, sempre que se propunham soluções mais expeditas e administrativas ou reguladoras, o right to be left alone ( muitas vezes traduzido em português por direito ao esquecimento, quando uma mais exacta tradução seria o direito de ser deixado em paz) foi frequentemente recusado como direito fundamental, nomeadamente por aqueles que entendiam que, permitir ao Estado a intervenção reguladora em matéria de direitos fundamentais, abria a porta à limitação de outros direitos fundamentais e acarretava novas formas de censura.

O acórdão do caso de Max Mosley, ex-presidente da FIA, demonstra que o right to be left alone é um direito sem tutela jurídica em muitas jurisdições.

O crescimento e utilização das Tecnologias de Informação (TI) da web e o aparecimento dos ISP’s e das redes sociais obrigaram, porém, que na última década se retomasse a equação da tutela da privacidade.

O que há de radicalmente novo na sociedade digital, que determina a redefinição doutrinária da prevalência (ou não) do direito à privacidade? Como afirmou David Ardiz, director do Digital Media Project for Internet and Society da Universidade de Harvard, “The amount of information available about most individuals today far exceeds any other time in human history. The fact that many of us don’t have control over how that information is shared is a significant change.

Todos sabem que os agentes económicos hoje – e com uma tendência de crescimento exponencial – guardam a maior parte da sua informação e dos seus registos em formato electrónico. As razões são diversas e relativamente conhecidas: produtividade acrescida, facilidade de acessos, simplicidade de manuseamento e até preocupações ambientais. Mas com toda essa informação, são armazenados dados pessoais, que muitas vezes os agentes económicos deixam sem protecção e à disposição de quem se dedica ou ao voyeurismo informático ou ao cibercrime, que vai desde o roubo das diversas formas de identidade, tanto físicas como electrónicas e virtuais, como a práticas que podem ir até à fraude em larga escala, à apropriação de segredos de negócio ou dados de elementos chave das empresas e da administração pública. O tema da Wikileaks – e o seu fim – é um bom exemplo de como, a pretexto da liberdade de informação, se procedeu a uma devassa e tratamento de dados pessoais que, entre outros direitos fundamentais, violou repetidamente o direito à privacidade.

O dilúvio de dados pessoais que a cada minuto entra na web e as lacunas na legislação (completadas por uma jurisprudência que tarda em consolidar-se) determina uma “falha de mercado” digital resultante do desconhecimento e/ou não cumprimento das leis de protecção de protecção de dados, o que leva à necessidade de repensar a protecção do direito fundamental pelo qual inicio estas linhas: o direito à privacidade. Gera também o imperativo de meditar sobre a necessidade de, no mercado electronicamente acedível e ilimitado, reconhecer o direito à privacidade e incorporar no conceito deste o right to be left alone que, numa sociedade digital, deve ser entendido como um direito fundamental.

Em Portugal, saber se vigora o reconhecimento do direito à privacidade como direito fundamental, leva-nos directamente ao elenco destes que é feito pela Constituição da República. Pode dizer-se que, até 1989, a Constituição, nos seus artigos 25.º e 26.º consagrava sem ambiguidades o direito à privacidade. A revisão constitucional de 1989 introduziu, no entanto, alterações lamentáveis e desnecessárias no texto constitucional, nomeadamente no art. 26.º n.º 1 onde passou a constar o reconhecimento do “direito à palavra”. Em vão, a doutrina veio interpretá-lo como “o direito a que não sejam registados, divulgados ou, por qualquer forma, utilizados dados pessoais sem o consentimento das pessoas a quem tais dados se referem”. Em vão, a revisão constitucional de 2004 explicitou que a Constituição pretendia ver no “direito à palavra” a garantia contra a utilização e obtenção abusiva de informações relativas a pessoas e famílias. Em vão. Entre nós, foi acolhida a partir de 1989 a doutrina, segundo a qual, o direito à privacidade é um direito limitado e não um direito absoluto e fundamental, o que na sociedade digital significa o direito à intrusão permanente, “through the looking glass”, como escreveria Lewis Carrol. É preciso imaginar um mundo composto por Alices virtuosas para nos sentirmos protegidos pelos direitos que a Constituição consagra e nos atribui. Ora, o mundo digital é tudo menos isso.

Restam-me poucas dúvidas sobre a conclusão. A lei tem de mudar. É tempo de olharmos para a web não como um espaço aberto em que o free-riding é uma prática natural, mas como um espaço controlado, tema sensível, mas sobre o qual o legislador e a opinião pública devem meditar. E levanta-se a questão de saber que tipo de “braço armado” pode o Estado ter na protecção dos dados pessoais. Um poder judicial especializado? Uma agência com poderes coercivos e de investigação? São tentações em que não deve assentar uma resposta que é cada vez mais urgente. A solução, assumindo que vivemos num Estado de Direito, só pode ser a de uma lei que permita um private enforcement eficaz e um reforço das competências e da independência da Comissão Nacional de Protecção de Dados como acontecia anos atrás, quando Luís Silveira foi o seu presidente. Em qualquer caso, uma leitura atenta dos sinais dos tempos e da sociedade digital leva a concluir que, em matéria de protecção de dados pessoais, a web não pode continuar a ser um ilimitado playground e é tempo de fazer soar a hora do fim do recreio. Isto, se quisermos continuar a acreditar que entre nós se protegem os direitos fundamentais da pessoa humana.

De outro modo, consolida-se o poder crescente e crescentemente aceite dos grandes players das redes sociais e da sua aceitação como mercado aberto, que vai impunemente permitir a devassa da vida privada mas também abrigar o corpo da mentira. Como dizia N. Elliot em 2013, a propósito das redes sociais e de quem dita as suas regras:“If they stopped dancing around (the data) and started using it, it would be incredibly powerful” (Elliot, N. (2013), Facebook: Fighting for Social Supremacy).