O êxito da novela “2034: A Novela da Próxima Guerra Mundial” – publicada este ano na América mostra como a possibilidade de uma guerra com a China entrou na psique americana. Os autores, quais Tucidides modernos, popularizam a ideia que os riscos estratégicos que advêm da China são independentes do maior ou menor pacifismo dos regimes democráticos.

Na Europa, os espíritos não absorveram ainda que os riscos estratégicos que vêm da China são reais e concretos. Biden chegou ontem à Europa para ressuscitar um relacionamento abatido e persuadir os parceiros europeus a coordenar as políticas sobre a Rússia, a China, o aquecimento global e a luta global contra a pandemia. Apesar dos avanços dos últimos meses, Europeus e Americanos estão ainda longe de concordar nas premissas fundamentais do seu papel conjunto.

Na restauração da aliança transatlântica, a narrativa é de importância central. Um dos maiores poderes da América é o de contar histórias. Este poder não é apenas parte de um poder suave de saber entreter, mas serve um propósito político maior. Em momentos de transição, as narrativas servem para criar cenários, atribuir responsabilidades e apontar caminhos que servem de base à ação.

A agenda de Joe Biden na Europa inclui uma reunião do G7, a Cimeira da NATO, a Cimeira EU-USA, uma reunião com Putin e consultas bilaterais. Contudo, apesar desta agenda carregada e comprometida, Americanos e Europeus continuam em busca de uma narrativa comum.

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A necessidade desta narrativa é aguçada pela atual crise de confiança na Europa, não só nas suas instituições, como na capacidade de liderança de Washington. Um estudo do European Council on Foreign Relations, publicado ontem, mostra um declínio acentuado da fé dos Europeus. Em nenhum outro sítio é esta mudança mais visível do que na Alemanha, onde uma verdadeira mudança geracional põe em causa a identidade nacional construída no pós-guerra. Construída de abnegação e sacrifício na expiação do nazismo, esta forma de estar na Europa e no mundo foi fundacional da ordem internacional do pós-guerra.

O perigo da emergência de uma identidade mais egoísta e avessa ao multilateralismo na opinião pública na Alemanha – como aquele que alimentou a vitória de Trump em 2016 – está agora em cima da mesa. Os efeitos desta mudança sistémica fazem-se já sentir no sistema político alemão, com os tradicionais partidos do centro (SPD e CDU) a diminuir drasticamente o seu apoio. Apesar de não ser clara a direção desta mudança, é claro que estamos num momento chave da transição da ordem internacional, onde a capacidade narrativa das forças liberais é essencial para moldar as décadas que se seguem.

A administração Biden, ciente desta necessidade, põe os valores democráticos e a sua defesa contra o modelo autoritário da China e da Rússia no centro da sua estratégia. Em todos os documentos estratégicos americanos a ideia da defesa da democracia é evocada como base da reconstrução de parcerias globais, principalmente na construção de esferas de influência das tecnologias digitais, onde o Ocidente liberal se confronta com a China, da inteligência artificial aos chips, dos semicondutores à biologia sintética.

Falta na Europa, pois, quem acompanhe Washington na produção de narrativas e fórmulas que concentrem os espíritos e sirva de base à ação conjunta das democracias liberais. A alternativa é um recentrar nacionalista, que a mais ninguém beneficia.

Madalena Meyer Resende (no twitter: @ResendeMeyer) é um dos comentadores residentes do Café Europa na Rádio Observador, juntamente com Henrique Burnay, João Diogo Barbosa e Bruno Cardoso Reis. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00 e às 22h00.

As opiniões aqui expressas apenas vinculam o seu autor.

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