Como o pessoal diz agora no inglês original: “Disclaimer!” Ou seja, nota prévia: sei por experiência própria o que uma bebedeira é. É fácil uma bebedeira oferecer recordações que, mesmo anos depois, suscitam gargalhadas mas admito que, no seu núcleo, o período mais boémio que vivi foi triste. Como assumo com alegria e sem reserva o papel de moralista de serviço nesta coluna do Observador, não quero ser acusado de hipócrita. Ao lamentar bebedeiras assumo que cometi umas poucas no passado. Não lêem um anjo mas um pecador arrependido.

Apercebo-me com mais veemência em 2022, agora que a minha geração tem filhos a chegar à maioridade, que a bebedeira permanece na nossa cultura como inevitável ritual de passagem. E que a maioria dos pais, os pais da minha idade!, assim mesmo a toma, entregando passivamente os seus filhos à inevitabilidade da primeira noite de boémia e apagamento alcoólico. As criancinhas que ainda há pouco mais de uma década eram mimadas e poupadas de qualquer risco, não fosse a infância traumatizá-las para uma existência de sofrimento irreversível, são agora bovinamente conduzidas pelos braços dos próprios pais a este imenso altar da garrafa. Portanto, o esquema funciona mais ou menos assim: até à primeira tosga somos helicópteros; daí em diante elas que se safem em voo livre.

E depois há detalhes que nem o Diabo consegue inventar: os pais de hoje conduzem os seus filhotes de casa à cadela, e da cadela a casa (para os menos versados em álcool, “passear a cadela” é equivalente a apanhar uma bebedeira). Tudo, certamente, em nome da segurança. Podíamos chamar-lhes taxistas por pagar ou ubers pro-bono. Chamemos-lhes apenas progenitores em trajectos nocturnos constantes para, no meio da madrugada entornada, zelar pela integridade física dos seus. Corpo sempre, alma logo se verá.

Sim, calculo os argumentos que certamente romantizarão a excitação alcoólica como o despertar dos sentidos dos jovens para as melhores euforias da existência. Se alinharmos por este fio condutor, não somente a bebedeira se tolera como se impõe. No final, os pais amigos dos seus jovens filhos recitarão juntos aquelas linhas de Baudelaire: “É preciso estar sempre bêbado. Tudo se reduz a isso; eis o único problema. Para não sentir o fardo horrível do Tempo, que vos abate e vos faz pender para a terra, é preciso que vos embriagueis sem cessar. Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, a escolha é vossa. Mas embebedai-vos….” Diante de um grande fatalismo, nada como alguma dose de alcoolismo.

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A ironia é que Baudelaire entendeu uma coisa fundamental acerca da bebedeira. Uma bebedeira é o que é por ser uma bebedeira; mas uma bebedeira também é sempre o que ela potencia. Como assim? Uma bebedeira é um produto final (a pessoa ficou bêbada e pronto), mas a bebedeira é também um processo (a pessoa, ao ficar bêbada, ficará muitas outras coisas além disso). Os males de uma bebedeira vêem-se naquilo que ela provoca imediatamente na saúde de quem a pratica, mas os males da bebedeira vêm-se também em toda uma outra lista de factos que se seguirá através dela. Todos os bêbados, ou ex-bêbados preferencialmente, sabem que o pior que a bebida lhes fez não foi necessariamente o efeito físico consequente.

A Bíblia, ainda antes de Baudelaire, entendeu isso. Todas as pessoas são também veículos. Conforme o ocupante do veículo, muda a viagem. Uma pessoa se for um veículo ocupado pela pinga, chegará a um lugar; outra pessoa com outro ocupante a outro lugar chegará. “E não vos embriagueis com vinho, no qual há dissolução, mas enchei-vos do Espírito” (Efésios 5:18). Nessa medida, as Escrituras mais do que simplesmente proibirem entornamentos, recomendam os entornamentos certos, que neste caso passavam por uma disponibilidade tal para Deus que a pessoa falava, cantava, louvava e agradecia vivendo a Igreja como o palco dessa exuberância (Efésios 5:19-21). Não é por isso, por acaso, que hoje as Igrejas sejam lugares que assustam mais do que algumas velhas tabernas (e não é, por isso, por acaso que a primeira apreciação que os não-cristãos fizeram da energia espiritual dos cristãos no dia de Pentecostes foi a de uma bebedeira).

Se quisermos ser rigorosos, eu não facilito bebedeiras aos meus filhos porque o excesso é em si mau; eu quero os meus filhos sem bebedeiras para que eles saibam que o excesso certo é o de Deus neles. Não educo os meus filhos para serem, neste sentido, irrepreensivelmente moderados—de gente moderada está o Inferno cheio. Sendo nós vasos (outra imagem bíblica), de alguma coisa nos devemos encher, não haja dúvidas. E o propósito não é ficar pela metade, concordamos. Não desejo os meus filhos espirituosos, desejo-os espirituais. É esse o brinde que espero poder fazer com eles no futuro.