Da direita à esquerda, os adversários de António Costa fizeram da maioria absoluta o assunto destas eleições. A bem dizer, não há outro: ninguém espera alternância no governo, nem, mesmo que essa alternância fosse provável, grandes variações de políticas. Resta, para tentar excitar o eleitorado, a hipotética maioria absoluta de Costa. À esquerda, dizem que levará o PS, livre da actual geringonça, a uma orgia direitista; à direita, que arrastará o PS, sobretudo se ampliada por uma maioria de dois terços com comunistas e neo-comunistas, para um novo PREC. Compreendo que tenham de dizer isso. Infelizmente, a perspectiva de uma maioria absoluta de António Costa não me comove. Antes de atirarem as pedras, deixem-me explicar.

O PS consiste, há muito anos, num simples projecto de poder, assente no domínio do Estado como meio de controlar a sociedade. O governo de José Sócrates, de onde são oriundos os actuais ministros, foi apenas a confirmação dessa tendência, e não uma anomalia. O poder socialista pode parecer de esquerda, porque é estatizante, ou de direita, porque fará o que for preciso para manter o financiamento externo de que o Estado depende. Mas não é uma coisa nem outra. Por isso, com ou sem maioria absoluta, o PS não fará nenhum PREC nem nenhumas reformas liberais. Será e fará apenas o que for preciso para se conservar no poder.

Dir-me-ão: mas com uma maioria absoluta, os ex-amigos de Sócrates terão ainda mais domínio sobre o Estado. Por amor de Deus: o PS já é o nosso partido-Estado, o nosso MPLA, e não precisou para isso de maiorias absolutas, que só teve entre 2005 e 2009. O poder do PS não vem daí, mas de não haver outras alternativas, o que o deixa na charneira do regime, como “partido natural de governo”. A razão da ascendência do PS é o vazio à sua esquerda, desde o colapso do comunismo em 1989, e a confusão à sua direita, desde o fim do “cavaquismo” em 1995. Todos os partidos tenderam, para sobreviver, a apostar em acordos com o PS: foi o que fizeram o BE e o PCP, e é o que tenta fazer Rui Rio. Talvez António Costa aspire à maioria absoluta, para se glorificar e apagar a memória da derrota de 2015. Mas não lhe dará muito mais poder do que o que os seus adversários estão dispostos a reconhecer-lhe em troca de alguns sobejos da mesa do Estado.

Não quero exagerar o argumento, mas uma eventual maioria absoluta de António Costa até poderia ter vantagens para o regime. Em primeiro lugar, colocaria todas as responsabilidades da governação no PS, um partido que sempre soube fugir delas. Não poderia desculpar-se com esta ou com qualquer outra geringonça. Em segundo lugar, talvez forçasse os outros partidos a enfrentar a perspectiva de uma vida sem acordos com o PS, e a tentar descobrir a possibilidade de novas políticas e de novos protagonistas. Quanto ao mais, já sabemos como uma maioria absoluta, no regime da constituição revista de 1982, não deixa os governos sozinhos. Há sempre o Presidente da República, que tende até, nessas circunstâncias, a emergir ainda mais como contrapeso ao governo, com maior compreensão do país e particularmente das oposições. Ou seja, e paradoxalmente, talvez Costa estivesse menos à vontade com uma maioria absoluta.

Por outro lado, sou capaz de imaginar horizontes um pouco mais inquietantes: por exemplo, acordos de Costa com um BE que já só tem causas fracturantes para se distinguir, ou com um Rui Rio sempre assanhado contra a independência do poder judicial e ansioso por esquartejar o Estado para arranjar outra Madeira no continente. Parece-me pior do que uma bancada do PS com mais de 115 deputados.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR