Está a acontecer de repente. Para os porta-vozes da maioria social-comunista, a oposição já não é só “fascista” como antigamente: agora também é “racista” e “xenófoba”. Alguns vão mais longe: não é apenas a oposição, é o país todo, todos os portugueses. Talvez por isso, eis o governo, contra a Comissão Nacional para a Protecção de Dados, a exigir que os recenseamentos passem a incluir os “dados étnicos da população”. Para quê? Para identificar e proteger os “afrodescendentes e ciganos” contra a ideologia e a estrutura racista da sociedade portuguesa. Que se passa?

Como todos sabem, antigamente era suposto não haver “racismo” em Portugal. Durante anos, Gilberto Freyre serviu à ditadura salazarista para demonstrar a vocação inter-racial da nação. Em 1975, o PREC repudiou muitas das teses do salazarismo, mas não essa. Segundo Vasco Gonçalves, os portugueses eram até meio-árabes ou meio-africanos. A ideia ainda vivia nos anos 80 e 90, no tempo da integração europeia e da Expo-98: nenhum outro povo teria tanto jeito para lidar de igual para igual com povos de fora da Europa. Portugal era, por isso, o natural “mensageiro entre o Norte e o Sul”.

Como é óbvio, tudo isto era fantasia. Simplesmente, os salazaristas precisavam de justificar a conservação das colónias, os revolucionários de 1975 de negar a Portugal um destino europeu ocidental, e os europeístas de 1985 de valorizar o seu pequeno país em Bruxelas. Mas embora nada disto resista à mais ligeira espreitadela no armário (escravatura, “limpeza de sangue”, Estatuto dos Indígenas, preconceitos ainda correntes, etc.), também é verdade que os portugueses nunca perfilharam o tipo de segregação racial vigente no sul dos Estados Unidos ou na África do Sul. Este é um país em que o primeiro-ministro tem família em Goa e o líder da oposição na Guiné-Bissau, e ninguém faz grande caso disso. Quando é que, portanto, nos tornámos no equivalente do Estado do Alabama de Não Matem a Cotovia?

Vamos entender-nos. Se houve razões políticas para apagar o racismo do carácter nacional, também as há agora para, num exagero inverso, o transformar no traço definidor da sociedade portuguesa, numa cópia atamancada das polémicas americanas. Mas por mais anedótica que esta racialização de Portugal pareça, faz sentido para este governo e para os seus aliados. Não se trata apenas de transformar a oposição numa Frente Nacional muito conveniente para justificar a frente social-comunista. O governo e a sua maioria têm trabalhado para segmentar Portugal. Temos assim os que, no sector público, recuperam rendimentos, contra os que, no sector privado, não recuperam. Ou os que, por mercê do governo, não pagam impostos directos, contra os que pagam. Pela mesma lógica, teremos agora as “minorias étnicas”, defendidas pela estima governamental, contra a maioria racista.

O objectivo nunca é garantir direitos iguais para todos, mas criar grupos de identidade com rendimentos e estatutos dependentes do Estado, e portanto potencialmente fiéis àqueles que, na política, reclamam zelar pelos seus interesses particulares. No caso das “minorias étnicas”, este é o melhor caminho para dificultar a sua integração e inspirar preconceitos. Mas também para garantir a sua vulnerabilidade e, logo, a sua dependência, que é o que importa à oligarquia no poder.

Os críticos do governo tendem a focar-se na dívida pública ou na economia. É compreensível: é o que se pode medir. Mas talvez esta cínica divisão dos portugueses ainda venha a ser reconhecida como a mais nefasta herança da actual governação. A sociedade portuguesa nunca foi perfeita. Mas este governo está a trabalhar para a tornar pior.

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