1 Confesso-vos que fico sempre fascinado quando algumas vozes da dita esquerda das igualdades e da defesa das massas populares verbalizam em alto e bom som sentimentos que deixariam mais orgulhoso aqueles velhos monárquicos com saudades do tempo em que as suas famílias eram alguém na corte do que qualquer republicano nascido depois do 5 de outubro de 1910.

Desta vez, foi Joacine Katar Moreira a revelar a monárquica que tem escondida dentro de si ao proclamar numa manifestação contra o racismo: “Que ninguém me diga que eu não estou onde devia estar. Eu nasci para estar ali. Eu vou continuar ali. Eu não me imagino em mais sítio nenhum hoje.” O “ali” e “mais sítio nenhum”, esclareça-se, é a Assembleia da República.

A proclamação não deixa de ser profundamente irónica, já que foi a resposta pública de Joacine à retirada de confiança política anunciada pelo Livre. Aliás, se substituirmos o Parlamento pelo Palácio da Ajuda, temos de constatar que nem D. Duarte Pio diria melhor.

Joacine Katar Moreira devia pensar seriamente em pedir para ser anunciada como “A Rainha”, em vez de deputada. Está mais de acordo com a imagem de predestinada que gosta de passar de si própria.

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E não Joacine, ninguém nasce para ser deputada, ministra, primeira-ministra ou Presidente da República. Os cidadãos portugueses, como você, é que nasceram para escolher os seus representantes. Esse é um princípio básico da República.

Sarcasmos à parte, depois de chamar a polícia para não ser perturbada com perguntas de jornalistas, depois de discursar no Congresso do Livre de forma completamente desabrida e populista, esta é mais uma prova de como a ex-deputada do Livre tem um carácter político autoritário, narcísico e anti-democrático.

Joacine até já pergunta: “É normal os fascistas falarem?” Quando se quer calar os “fascistas”, já se sabe onde acaba a conversa.

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O mais trágico é que foram necessários apenas quatro meses — o tempo suficiente para um folhetim digno das telenovelas mexicanas — para que todas estas características explosivas de Joacine Kater Moreira viessem ao de cima. O que tem, a meu ver, várias consequências para o Livre — e nenhuma delas é boa.

  • Oportunismo político. O Livre foi claramente oportunista ao querer apresentar uma mulher gaga como candidata à Assembleia da República. Os dirigentes do Livre sabiam perfeitamente que Joacine ganharia notoriedade não pela sua capacidade política, nem pelo curriculum académico como investigadora do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, mas sim pela sua gaguez. Quiseram apresentar uma candidata tão disruptiva e diferenciadora que o feitiço acabou por se virar contra o feiticeiro.
  • Radicalismo. O Livre sempre se apresentou através de Rui Tavares como um posicionamento de tolerância e moderação. Um partido de centro-esquerda que se colocava entre o PS e a extrema-esquerda do Bloco de Esquerda e do PCP. Ora, os quatro meses da novela “Joacine” retirou qualquer sustentação a essa estratégia. Depois tudo o que aconteceu nos últimos meses, o Livre passou a ser percecionado como um partido radical e em guerra permanente.
  • Organização. A suposta originalidade do Livre — seja em escolher Joacine Kattar Moreira através de primárias, seja em não ter um líder — foi o seu próprio inimigo. As novas metodologias foram tão originais, tão originais que acabaram por provocar o caos e a anarquia — a antítese do que deve ser uma organização.
  • A política identitária como política única. Apresentado como a nova geração dos partidos ecologistas, europeístas e de esquerda, o Livre é hoje conhecido quase única e exclusivamente pela política identitária que Joacine decidiu apresentar. Sendo a luta contra o racismo uma luta obviamente justa e necessária (porque há racismo em Portugal), apresentá-la, contudo, da forma insistente e repetitiva a propósito de tudo e de nada, só faz com que não tenha a eficácia que deveria ter. Pior: passa a ser uma espécie de política única que inevitavelmente cria uma deputada e um partido redutores. Aliás, não deixa de ser elucidativo que Joacine Katar Moreira tenha escolhido uma manifestação cívica e apartidária contra o racismo (a propósito do caso Cláudia Simões) para responder politicamente aos seus camaradas do Livre.

Resumindo e concluindo: duvido muito que o Livre venha a ser o “partido mais interessante do séc. XXI”, como prometeu o fundador Rui Tavares. O que assistimos nos últimos quatro meses foi a uma espécie de processo de implosão em curso que é muito difícil de reverter. Porquê? Porque dificilmente os eleitores que elegeram Joacine vão voltar a votar no Livre.

Por maioria de razão, mais difícil será a uma deputada única e não inscrita conseguir criar um movimento de tal forma agregador que consiga voltar a ser eleita daqui a quatro anos.

3 Sobre a declaração de André Ventura, já outros cronistas, como o Alexandre Homem Cristo e o Pedro Picoito, classificaram muito bem o que a mesma é: uma declaração racista que só desqualifica quem a faz e que todo e qualquer democrata, seja de esquerda ou de direita, só pode repudiar.

O que não faz, contudo, com que a proposta que Joacine apresentou no Parlamento para restituir todo o património cultural das ex-colónias presente em território português — e, assim, “descolonizar” museus e monumentos estatais —, esteja correta.

Esta nova fase da política identitária que a futura ex-deputada do Livre quer abrir é especialmente perigosa. Porque uma eventual reabertura do processo de descolonização dividirá os portugueses, acicatará e radicalizará ainda mais o combate político e, mais importante, será uma oportunidade para André Ventura e o Chega crescerem.