1Há perversidade nas argumentações sobre a culpabilidade recorrente da Ucrânia nesta guerra que a Rússia iniciou quando invadiu aquele país. O mesmo se verifica agora com a queda de um míssil na aldeia polaca de Przewodow, na fronteira com a Ucrânia. Explico.

Uma querida amiga foi diagnosticada com cancro. No decurso do tratamento agressivo que fez teve problemas graves. Plaquetas baixas. Diabetes. Fez transfusões, mais medicação. Efeitos colaterais do tratamento. Mas a raiz destes problemas nunca foi o tratamento, foi o cancro que ferozmente combatia.

A responsabilidade do que aconteceu na fronteira polaca é do governo russo. Não é da defesa anti-aérea ucraniana, ainda que esta possa ser a razão da queda do míssil, não é da NATO, nem é dos Estados Unidos. Não teria acontecido se a Rússia não tivesse invadido a Ucrânia. Não é uma simplificação, é a realidade sem disfarces.

Um território soberano foi invadido a pretexto das ambições imperialistas de outro e para a manutenção do seu governo autocrático e cleptocrático em deriva ditatorial. Têm sido cometidas atrocidades contra os civis ucranianos; devastadas as infraestruturas do país. Enquanto isso, a máquina de propaganda pró-russa, lá e cá, aponta o dedo à Ucrânia e ao Ocidente. Se dúvidas houvesse quanto às intenções ocidentais, a queda deste míssil na Polónia, que pertence à NATO, tê-las-ia respondido: não houve qualquer escalada do conflito. Mas pergunto: passa-se o mesmo do lado russo? O agravamento dos ataques aéreos à Ucrânia oferece a resposta e de igual forma o aumento da perigosidade dos efeitos colaterais.

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Como quase todos os conservadores moderados que conheço, sou pessimista. Já o disse aqui, a propósito da claríssima análise de Vasco Pulido Valente, a invasão russa da Ucrânia era, infelizmente, previsível, o que não se previa era a resposta de Zelensky e do povo ucraniano que num arrasto nos levou por junto e insuflou a NATO e as democracias ocidentais. Esperava-se a decapitação e substituição do governo ucraniano por um governo pró-russo. A Ucrânia, com o sacrifício da sua população e território, estanca a ascensão de uma nova ordem internacional. Também por isso a defesa da Ucrânia tem de ser reforçada com os meios diplomáticos e militares de que o ocidente dispõe.

Neste momento charneira em que vivemos todas as decisões contam. E ainda que em terreno precário, a esperança na manutenção das democracias revive. Até para uma pessimista: de um lado a Ucrânia; de outro a não-vitória dos candidatos trumpistas nas eleições intercalares; a possibilidade de Mulheres Vida Liberdade crescer na direcção da revolução democrática no Irão. A democracia e o Estado de Direito fazem-se em cada decisão.

2Estive presente na última Feira do Livro de Lisboa, como os outros escritores convidados a participar pela editora a que pertenço, a Guerra e Paz. À hora prevista, compareci no stand. Por coincidência de horário, tive, então, o gosto de conhecer pessoalmente João Pedro Marques de quem sou leitora também aqui no Observador, e com quem, através dos livros que escreveu e cuja leitura recomendo, aprendi. O meu respeito e admiração por João Pedro Marques têm origem na defesa intransigente da história sobre a teoria crítica, vulgo, woke. João Pedro Marques, muito gentilmente, fez-me depois chegar Who Abolished Slavery?, que agora terminei. Ao seu texto que já havia lido, acrescem as contribuições de Seymour Drescher e Peter C. Emmer. A organização dinâmica dos textos deste livro faz-nos sentir participantes de um debate que deve ser dilatado e levado para o espaço público.

A autora escreve segundo a antiga ortografia