Como já escrevi aqui algumas vezes, o mundo tem vindo a mudar profundamente nas últimas duas décadas. Parece-me que já há poucas dúvidas sobre uma mão cheia de elementos que vieram para ficar: o declínio norte-americano e a ascensão chinesa, que desequilibraram o mundo unipolar e que prometem uma longa transição de poder sem vencedores. A reemergência da Rússia e, menos evidente mas também possível, uma nova proeminência para a Índia. A mudança do centro de gravidade geopolítico do Atlântico para o Pacífico. O sistema internacional está, por isso, a evoluir num sentido incerto, mas porventura muito menos estável e onde a competição vai ter um papel muito mais incisivo.

No plano dos valores, há quatro mudanças essenciais. A emergência de estados autocráticos ao estatuto de grandes potências torna as relações entre os países necessariamente diferentes. Pela primeira vez em muitas décadas, temos estados que não são inimigos declarados – são rivais, o que não é a mesma coisa – mas que não falam a mesma linguagem normativa.

Segue-se aquilo que se convencionou chamar a consolidação do poder e o aparecimento de “homens fortes” que, cada um à sua escala, destroem ou enfraquecem a democracia no interior dos seus estados. Estes “homens fortes” tendem a ter relações cordiais uns com os outros, porque aqui sim, há uma linguagem comum, que contempla interesses nacionais, soberania, esferas de influência e competição. O mais preocupante não são líderes de estados que sabíamos, à partida, que não se prefiguravam entre os que se sentiam confortáveis com a liberdade. São os “demagogos” – a expressão tem sido usada por vários autores – que ganham eleições em países democráticos e que atropelam o liberalismo sem pensar duas vezes para atingir os seus próprios fins.

Como se não fosse suficiente, as democracias estão a passar por um conjunto novo (ou melhor, renovado) de problemas internos culturais, sociais e económicos, mas desta vez com debates menos livres: a autocensura e a censura entre pares – informais é certo, mas não menos poderosas por causa disso – está a tornar o debate de ideias cada vez mais difícil. A tendência é que os grupos com um discurso dominante transformem a discussão de ideias numa via de sentido único (E, num parênteses, talvez seja esta a maior ameaça à democracia liberal).

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Há ainda uma última razão, muito poucas vezes evocada: o choque entre o exercício de poder e a moralidade, neste discurso emergente, deve estar subjacente a esse mesmo exercício de poder. Isto a propósito de críticas cada vez mais audíveis a quem foge daquilo a que podíamos chamar fazer “a coisa certa” e aquilo a que geralmente designamos realpolitik, a arte do possível na tomada de decisão sempre limitada pelo momento histórico e político que estamos a passar. Por outras palavras, quer na política interna, quer na política internacional nas democracias, os fins estão subordinados aos meios. Nada disto é novo. O problema é que os meios iliberais passaram a justificar os fins liberais. E isso não poderia deixar de gerar uma crise. Nos últimos anos, apesar de termos enfrentado um conjunto de problemas, esquecemo-nos que, sem sobrevivência a normatividade é inútil.

Isto a propósito não só do contexto político atual, mas também do livro recente de Patrick Porter, The False Promise of Liberal Order. O autor não é propriamente antiliberal, como muitos que se dedicam a escrever sobre este tipo de assuntos. Mas mostra teórica e empiricamente, que os Estados Unidos da América são uma hegemonia imperial e como qualquer potência que se encontra nesta posição partilha de um conjunto de elementos que caracterizavam as suas antecessoras: o sentimento de que é “especial” e “singular”; a “atitude seletiva em relação às regras”; a “propensão para a guerra” e um “elevado sentido de si próprio como fonte de ordem e luz”. Ora, estes elementos geram “hipocrisia”, “organizada ou eventual”, o que não torna Washington diferente de quem lhe precedeu.

Foi a radicalização destas características e a ideias de que o credo americano era universal que legitimaram, nos anos 1990, a transformação de Washington num “estado jacobino”, incapaz de travar os seus impulsos imperiais no exterior e forçar um pensamento cada vez mais único dentro das suas fronteiras. E é a manutenção desta crença – alimentada pelas elites liberais e cosmopolitas – que gerou uma contrarrevolução, que se materializou na eleição de um demagogo, e na resistência “nostálgica” anti-Trump, verdadeiramente convencida que tudo voltará ao normal (o normal é já uma espécie de passado glorioso e idealizado, pré-2016, como acontece com tantas outras políticas geridas por emoções e não por factos).

Tudo o que é desmedido acaba por ter consequências nefastas e a ordem americana, tal como a conhecemos, acabou por ser vítima dos seus próprios excessos. E não só na política interna mas também na política externa chegaria o momento da antítese. A administração Trump deixou, pura e simplesmente, de liderar criando um vazio de poder. Que pode vir a ficar vazio por algum tempo por falta de comparência de quem tenha capacidade para policiar o mundo (o que normalmente origina caos e conflito), mas também pode ser ocupado pela China que, Porter não tem dúvidas, seria uma hegemonia bem mais dura que os Estados Unidos, “mais brutal” e “repressiva” ainda que “menos prescritiva” nos assuntos de outros estados, “a menos que o que esteja em causa seja a obediência”.

Ficamos a perceber que um mundo sem ordem é pior que um mundo com potências que queiram liderar. E que a liderança americana, apesar das suas falhas é a melhor solução pelo menos para o mundo ocidental – e eventualmente para as restantes democracias. Mas para resultar são precisos pelo menos três requisitos: contenção nos sonhos imperiais, especialmente no que respeita à transformação de outros estados; reformar a liderança americana com base em factos e não em emoções nostálgicas; e reformular alianças normativas, mas também acordos de interesse. No fundo, Porter prescreve uma ordem regional liberal defensiva, capaz de fazer face aos desafios que aí vêm. Pouco ambicioso? Não me parece. Há poucos exercícios políticos tão difíceis – e mais necessários – do que a contenção e o uso adequado do poder. Especialmente quando se tem muito.