Em artigo anterior (OBS, 29 de agosto) escrevi sobre a constelação tecnológica 4G+5G e sublinhei aquelas que são as características principais da rede 5G: hipervelocidade, baixa latência, alta conectividade, elevada densidade e intensidade, curto alcance. Se pensarmos, agora, no polígono digital que esta rede nos oferece – Big data e computação na nuvem, (BDCC), Internet dos objetos (IOT), Inteligência artificial (IA), Realidade aumentada e virtual (RAV), Computação periférica (EC) – e na interação intensa entre estes e outros dispositivos tecnológicos e digitais, estamos cada vez mais próximos das chamadas “propriedades emergentes” do serendipismo (do inglês serenpidity), a saber, interações fortuitas, incidentes imprevistos, impactos inusitados, descobertas acidentais. Como se, perante uma interdependência máxima, tivéssemos necessitados de uma nova hermenêutica interpretativa para os diversos momentos do acaso. Vejamos alguns aspetos de uma primeira chave de leitura.

1 As tecnologias 5G são imersivas, intrusivas e invasivas e, algumas delas, praticamente invisíveis

As tecnologias 5G devido à sua elevada imaterialidade, não obstante a materialidade das infraestruturas e dispositivos utilizados, tornam-se cada vez mais imersivas e, portanto, mais insidiosamente intrusivas e invasivas na esfera privada e particular de cada um de nós. O impacto pode ser brutal, de uma violência inusitada e, no entanto, sem explicação aparente. Uma interação fortuita, um acaso puramente acidental, talvez um assunto para um detetive ou caçador furtivo.

2 Vivemos cada vez mais em ambientes simulados e dissimulados e o que parece não é

Vivemos no reino das máscaras. Depois das máscaras naturais, as máscaras virtuais e agora, também, as máscaras virais. Quer dizer, viveremos, cada vez mais, em ambientes simulados e virtualizados e seremos, por isso, atores e personagens constantemente comprometidos e utilizando máscaras conforme as circunstâncias e as conveniências.  Imagine-se, agora, o princípio da realidade a contas com a “simulação dos objetos” quando estes, por via da “internet das coisas”, começarem a “ditar”, também, a sua realidade. No reino das máscaras tudo parece estar invertido e todos os acasos podem acontecer.

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3 O hipertexto leva-nos à beira do abismo, mais perto do caos que da ordem,

Quando todos – pessoas, coisas e inteligência artificial – comunicarem entre si no grande polígono digital e cada um usando uma linguagem simbólica convertível, teremos atingido o paroxismo absoluto, uma espécie de histeria coletiva de informação e comunicação num ambiente totalmente saturado. Estaremos, cada vez mais, num campo desestruturado à beira do caos e é cada vez mais estreita a margem ou o limbo em que viveremos, no preciso momento em que experimentamos a sensação do risco iminente.

4 A hipervelocidade torna o tempo quase irreal, que tempo é o nosso e qual é a memória desse tempo?

Como já disse, na rede 5G a hipervelocidade é a imagem de marca e cada velocidade devolve-nos uma determinada grelha de leitura da realidade. O passado e o futuro são, digamos, aspirados para o momento presente e nesse movimento perdemos não apenas o lastro histórico, mas, também, a promessa do futuro que nos garantia, ao menos, a esperança de uma expetativa. Num tempo quase irreal, o presente é, digamos, uma mera circunstância, um epifenómeno na grande seta do tempo e destinado a ser devorado por um ato vulgar de consumo.

 5 É preciso suspeitar para conhecer, temos de atualizar para o século XXI o princípio cartesiano da dúvida metódica e sistemática

A linguagem analógica da cultura iluminista e industrial está posta em causa; na era dos dados e das multidões e num tempo em que reina o mestre-algoritmo e a metalinguagem normalizadora das plataformas, a dúvida faz sentido: qual será a chave do segredo que irá presidir à “guerra das inteligências” e como iremos nós conciliar, positivamente, a inteligência artificial das máquinas automáticas com a inteligência emocional da comunicação e a inteligência racional da dúvida metódica?

6 A descontextualização da evidência estatística, a metalinguagem do algoritmo-mestre, a plurissignificação da realidade, eis uma verdadeira obra do acaso

O nosso arsenal teórico e, muito em especial, o campo das ciências sociais e humanas, composto de conceitos, categorias, tipologias, padrões, normas e procedimentos, com origem no “iluminismo moderno e na cultura analógica” estão definitivamente postos em causa e a academia deve preparar-se para rever o seu estatuto científico eminente se não quiser ser um ator secundário que corre pelo lado de fora da realidade da cultura tecnológica e digital. Porém, esta pode ser uma excelente notícia. Sendo a realidade um assunto interpretativo, isso quer dizer, muito modestamente, que as sociedades estão obrigadas a aprender constantemente, num exercício de experimentação feito de aproximações sucessivas. É aqui que nos encontramos hoje, se quisermos, entre a hermenêutica e a terapêutica transpostas para a era da cultura digital.

 7 O risco sistémico, o dano colateral, o passageiro clandestino, a mitigação do dano, a socialização do prejuízo

Com os acasos do serendipismo todos estes efeitos externos do sistema capitalista resultarão agravados. Digamos que crescerá bastante o risco sistémico da economia digital 4G e 5G e, nesse sentido, o Estado tratará, mais uma vez, de mitigar esse risco sistémico através da socialização do prejuízo que o contribuinte pagará no tempo próprio. À boleia do risco sistémico crescerá, também, uma forte litigância e contencioso de responsabilidade que procurarão dirimir o que é responsabilidade própria e o que é responsabilidade alheia e/ou coletiva. Seja como for, às externalidades do capitalismo convencional somam-se, agora, as externalidades do capitalismo digital. Não sei se teremos Estado bastante e contribuinte que chegue para tanta socialização de prejuízos.

8 Uma capacidade especial e um treino específico para lidar com os acasos do serendipismo

Doravante, nas sociedades de risco global e sistémico, estamos obrigados a desenvolver treino específico e capacidades especiais para entender e antecipar como se forjam e desenvolvem as interações fortuitas, os incidentes imprevistos e, por via deles, as descobertas acidentais.  Este é o grande paradoxo da incerteza. Quanto mais incerteza mais liberdade, uma vez que se alarga o campo das possibilidades e logo, também, o campo do episódio acidental. Por outro lado, os sinais dessas interações acidentais podem ser de tal modo fortuitas e furtivas que dificilmente caberão no interior das nossas métricas conceptuais e instrumentais habituais. Mais uma vez, vamos precisar de treinar um caçador furtivo para cuidar desta relação entre interação fortuita e descoberta acidental.

 9 A nossa inteligência e as faculdades humanas estão a transitar para fora do seu habitat biológico em direção ao transumanismo

Na sociedade da informação e da comunicação a inteligência deixou de estar contida nos limites humanos originais. Com efeito, nos dias que correm, a inteligência está dispersa e difusa, manifesta-se sob múltiplas formas e interage com praticamente tudo o que nos envolve. Deste ponto de vista, a realidade não para de aumentar todos os dias à medida que a inteligência se transfere para ambientes inteligentes que são extensões da nossa própria inteligência. Hoje tudo é smart, desde a realidade virtual e aumentada aos interfaces cérebro-computacionais, desde a inteligência dos objetos até à inteligência das máquinas. De facto, a nossa inteligência e as faculdades humanas estão a transitar para fora do seu habitat biológico e o corpo humano instala-se em dispositivos tecnológicos transumanos e pós-humanos cuja configuração futura nem sequer imaginamos. E muito menos os acasos que nos esperam.

 10 A abundância de informação debilita a atenção humana, vivemos em plena economia da distração num ambiente de vertigem digital

Somos screeners muitas horas por dia, é impossível manter a atenção num ambiente completamente saturado de notificações e avisos. A multiplicação dos dispositivos tecnológicos e digitais – uma espécie de sexto continente – exige de nós uma atualização constante. Todos os dias mergulhamos num imenso oceano de informação, experimentamos uma vertigem permanente para separar o essencial do acessório e lutamos com imensas dificuldades para administrar a nossa economia da atenção. No final do dia estamos exaustos e no dia seguinte, ainda debilitados, tudo recomeça. Na vertigem o foco da atenção converte-se num turbilhão, talvez, mesmo, em delírio e alucinação.

Notas Finais

Eis o vórtice em que estamos metidos: chips e sensores, drones e câmaras de vigilância, interfaces cérebro-computacionais e nano-implantes, máquinas inteligentes e mestres algoritmos, robots e veículos autónomos, torres e antenas. Neste ambiente congestionado e num campo eletromagnético 4G+5G cada vez mais saturado, seria impossível não acontecerem interações fortuitas, incidentes imprevistos, impactos inusitados, descobertas acidentais.

Aqui chegados, estamos obrigados a multiplicar os ângulos de observação e as perspetivas de olhar para os problemas. A surpresa pode ser, deveras, surpreendente. Basta “apenas” que aconteçam alguns acidentes graves cuja responsabilidade seja atribuída, “afinal”, à utilização abusiva de sistemas de inteligência automáticos e veículos autónomos. Estou convencido de que neste novo ambiente de virtualidade real, a descontextualização que a inteligência artificial e automática carrega consigo nos fará passar inúmeras provações. Não me surpreenderia, por isso, que o nosso nómada digital desenvolvesse uma capacidade especial de ubiquidade para lidar com interações fortuitas, investido, digamos, numa nova espécie de free raider ou caçador furtivo do serendipismo. Para acompanhar de perto.