Em Portugal, o panorama da corrupção no setor público começou a mudar radicalmente com uma ideia simples e arrojada: a criação dos “RALOS” – Responsáveis por Análise Legal e Operacional. Inspirados por um artigo publicado no Observador em dezembro de 2024, que comemorava o Dia Internacional Contra a Corrupção (9 de dezembro), os RALOS nasceram como uma das grandes inovações do Ministério da Justiça no início de 2025. Passados que foram dez meses que o primeiro RALO entrou em funções, em março de 2025, é altura, em mais um dia Internacional anti-corrupção, de fazer um balanço possível.
A proposta era clara: dotar o sistema público de uma camada extra de fiscalização em áreas especialmente vulneráveis à corrupção, como o emprego público e a contratação de empresas para obras e serviços. Equipados com ferramentas de inteligência artificial, os técnicos RALOS dedicam-se a analisar os editais de concursos públicos antes que sejam publicados no Diário da República.
O impacto foi imediato. No início, quase todos os editais analisados eram rejeitados por apresentarem irregularidades, parcialidades ou até indícios claros de “concursos com fotografia”. Dez meses depois, os números melhoraram significativamente: atualmente, entre 20% e 30% dos editais são barrados, uma redução impressionante que reflete não só o trabalho dos RALOS, mas também a adaptação dos agentes públicos a regras mais transparentes.
A reportagem de hoje leva-nos a Purgatório, uma localidade perdida na freguesia de Paderne, concelho de Albufeira, onde vive e trabalha um destes técnicos. Por questões de proteção da imagem, o seu nome não será revelado. Ele deixou a confusão de Lisboa para abraçar a tranquilidade da vida no campo, mas, todos os dias, está na linha da frente do combate à corrupção no emprego público.
A Vida de um Técnico RALO: Entre Editais e a Horta
Encontramos o nosso entrevistado num dia algo frio e chuvoso de dezembro, mas o ambiente acolhedor da sua casa em Purgatório contrasta com o rigor do clima. A cozinha cheira a café acabado de fazer, enquanto lá fora as galinhas passeiam pelo quintal. “Esta vida de campo salvou-me”, confessa, com um sorriso tímido. “Sair de Lisboa foi a melhor decisão que tomei.”
Nos últimos dez meses, ele tem equilibrado duas realidades aparentemente opostas: o sossego rural e a tarefa de analisar, com a ajuda da inteligência artificial, editais que podem esconder as mais variadas formas de corrupção.
“De manhã, o meu trabalho começa cedo. Às oito, já estou no computador a introduzir os novos editais no sistema”, explica. A inteligência artificial entra em ação, vasculhando cada detalhe dos documentos em busca de irregularidades: critérios excessivamente específicos, exigências desnecessárias ou condições que claramente favorecem um candidato em detrimento de outros.
“Há editais que são autênticos puzzles. O sistema ajuda-nos a classificá-los com um código de cores, muito parecido ao das urgências nos hospitais. Verde, amarelo, laranja e vermelho. Os verdes são editais limpos, prontos para seguir para publicação. Os vermelhos são bombas-relógio.”
Pergunto-lhe sobre os primeiros meses no trabalho, quando quase 100% dos editais eram rejeitados. Ele ri, balançando a cabeça. “Foi um choque. Descobrir como os concursos públicos estavam contaminados… quase me fez desistir. Parecia que não havia solução. Mas as coisas melhoraram muito. Hoje, já há um número considerável de editais que passam sem problemas.”
A redução drástica nas rejeições não é apenas reflexo de uma maior fiscalização, mas também da pressão que os RALOS colocaram no sistema. “Agora, quem prepara os editais pensa duas vezes antes de incluir exigências que cheiram a favorecimento. O nosso trabalho não é apenas rejeitar. É educar o sistema para ser mais justo.”
O Papel Transformador da Inteligência Artificial
Enquanto falamos, ele abre o computador para mostrar como funciona o sistema. Cada edital passa por várias camadas de análise. “O programa identifica palavras-chave, correlações entre critérios e até padrões históricos de favorecimento. Por exemplo, se um edital inclui exigências muito específicas, como experiência com um software que poucas pessoas no país dominam, o sistema marca como alerta.”
Após a triagem da manhã, o técnico passa a tarde a analisar os casos de risco em detalhe. “Os laranjas e vermelhos são os que exigem mais atenção. Há alturas em que o sistema deteta 30 ou 40 editais de risco. Neste ano com o PRR, por exemplo, não tem sido fácil.”
Apesar disso, ele afirma que a inteligência artificial é uma aliada indispensável. “Sem o sistema, este trabalho seria impossível. Somos poucos, e o volume de documentos é imenso. A IA faz o trabalho pesado, e nós concentramos a atenção no que realmente importa.”
Vida no Campo: Galinhas, Hortas e Combate à Corrupção
Mas a vida do técnico RALO não se resume ao trabalho. Na aldeia de Purgatório, ele encontrou um equilíbrio que parecia impossível na azáfama de Lisboa. “De manhã, estou na luta contra a corrupção. À tarde, vou à horta, trato das galinhas, apanho as laranjas. É terapêutico.”
Ele acredita que o ambiente rural contribui para a sua produtividade. “Aqui, o ritmo é outro. Não há trânsito, não há pressa. E isso ajuda a manter a cabeça limpa para lidar com um trabalho que, muitas vezes, pode ser frustrante.”
Pergunto-lhe se não sente falta da cidade. Ele reflete por um momento antes de responder. “Lisboa tem o seu encanto, claro. Mas este trabalho é remoto, e prefiro mil vezes estar aqui, no meio do campo. A corrupção é um problema nacional, e não importa onde estejamos para enfrentá-la.”
Outros Campos de Ação dos RALOS
O sucesso dos RALOS no combate à corrupção no emprego público inspirou a criação de equipas especializadas em outras áreas. “Hoje, temos RALOS que se dedicam exclusivamente à análise de contratos públicos com empresas, especialmente em setores como construção, tecnologia e saúde. São áreas com histórico de irregularidades.”
Ele destaca também a criação de RALOS voltados para subsídios e financiamento europeu. “Portugal recebe milhões em fundos europeus, e garantir que esse dinheiro seja bem aplicado é crucial. Esses colegas têm feito um trabalho impressionante.”
O Futuro dos RALOS
Pergunto-lhe como vê o futuro desta iniciativa. “Ainda estamos no início, mas acredito que os RALOS vieram para ficar. O impacto é inegável. A corrupção não vai desaparecer completamente, mas estamos a construir um sistema que dificulta cada vez mais as práticas irregulares. Isso já é uma vitória.”
Ao terminar a entrevista, ele volta à horta, onde as galinhas cacarejam alegremente. A vida simples em Purgatório contrasta com a complexidade do trabalho que realiza, mas talvez seja exatamente isso que lhe dá força para continuar.
“Ser RALO é mais do que um emprego. É um compromisso com a transparência e a justiça. E, no final do dia, saber que estamos a fazer a diferença vale todo o esforço.”
Portugal é, afinal, um país pequeno, mas iniciativas como esta mostram que, mesmo com recursos limitados, é possível enfrentar problemas tão profundos como a corrupção. Tudo começa com pessoas dedicadas – e, claro, com um bom sistema de inteligência artificial.