Alguns “estrategas” menos atentos acharão que a Rússia já perdeu a guerra de 2022 na Ucrânia. Não só não perdeu, como até pode nem estar a perder. É certo que o plano de derrubar Zelinsky e os seus apoiantes nacionalistas, através da conquista de Kiev, falhou redondamente. Fez bem o líder ucraniano quando se recusou a abandonar a capital. Também falhou a tentativa de cortar a Ucrânia em dois, através da linha do Dniepre. Mas daí a que a Rússia tenha perdido vai uma razoável distância. Perdeu homens, material e muito dinheiro. Mas não perdeu a guerra. Nem sequer é ainda possível saber, em termos do conhecimento público, quanto a clique de Putin já perdeu no xadrez de interesses da corte de Moscovo. Internamente, enquanto tiver a quem vender gás e outras coisas, não será pelos crimes russos na guerra que o poder e imagem da governação de Putin saem desgastados. A postura de Lavrov e a repugnante recusa em aceitar as atrocidades da guerra, revolta o Ocidente mas não tem eco na Rússia. Nem sequer há liberdade de expressão e opinião para poder medir a dimensão real da oposição russa. E também não é nova a ideia de que se pode enganar pessoas com ideias mirabolantes como a de que as execuções de civis foram maioritariamente cometidas pelas tropas “amigas”.

E há um crime de guerra a juntar aos já conhecidos e de que se fala pouco, cometido pelos oficiais russos contra os seus homens, o de os ter feito acampar na zona de exclusão radioativa de Chernobyl. Mas como foram miúdos russos a sofrer com a exposição à radiação, já parece não ter importância e na Rússia, naturalmente, ninguém fala do que se calhar nem sabe. A tradição russa em abafar acidentes militares com material radioativo é já um clássico da literatura médica, antes e depois da queda do Muro.

Conclusão: Putin parece estar sólido e protegido contra irradiações.

Ao ter usado uma tática de ataque em várias frentes, o exército russo tentou “esticar” as defesas ucranianas e ganhar por desistência do adversário. Estavam tão confiantes que descuraram princípios básicos do combate moderno, alguns com mais de 50 anos de existência, em termos logísticos e de apoio às colunas de blindados por via da infantaria e cobertura aérea. Conclui-se que houve falta de preparação e profissionalismo ao nível de comando e de forças operacionais. No entanto, ao sul da Ucrânia os ganhos foram significativos.

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Se a ofensiva no Leste resultar há um enorme risco de que o exército ucraniano fique encurralado numa bolsa a lesta da linha Izum, Slovyansk, Kramatorsk, Donetsk. Mas se as forças ucranianas se retirarem e oferecerem toda essa bolsa ao inimigo, os russos poderão reagrupar-se para atacar Dnipro a partir do sul e de leste. Não é fácil a posição ucraniana.

Conclusão: os russos começaram mal, mas estão fixos e taticamente melhor colocados no sul e leste da Ucrânia.

Com um preço altíssimo, sem contar com o das sanções económicas que também afetam quem sanciona, a Rússia já controla uma parte significativa da margem esquerda do Dniepre, a norte da Crimeia, da foz até Zaporzhzhia. Tem o quase total controlo de toda a margem norte do Mar de Azov e prepara-se para ocupar a totalidade dos oblasts de Donetsk e Luhansk. Não é coisa pouca. Imagino que queiram chegar à linha do rio Samara, até Dnipro, pelo menos isso. Gostariam de chegar lá, por orgulho, mas duvido que tomem Poltava. Nada nos autoriza a pensar que, depois de consumada a ocupação do sudeste da Ucrânia, a Rússia não tente passar para ocidente da foz do Dniepre e tente tomar Odessa para ter toda a margem norte do Mar Negro, dar acesso marítimo ao estado pária da Transnistria e isolar o pedaço da Ucrânia que vai da foz do Dniestre até ao extremo norte do delta do Danúbio a oeste. Em boa verdade, esse pedaço “deveria” ser Moldavo ou Romeno. Coisas das antigas partições entre os Impérios Russo e Austro-Húngaro. Os mapas explicam muita coisa.

Conclusão: A Rússia já tem ganhos territoriais que vai consolidar e aumentar.

Mantenho a minha tese de que se a Ucrânia tivesse aceitado a perda da Crimeia, que a maioria dos mapas internacionais já delimitam com a legenda “anexada pela Rússia em 2004”, e a “independência” dos estados fantasmas da Donbas russa, poderia ter tido apoio da NATO, quem sabe se mesmo a adesão, e evitado a carnificina em curso. Seria perigoso, mas às vezes é preciso arriscar para evitar males maiores. O artigo 5º, o tal que todos apontam para justificar a falta de apoio da NATO à Ucrânia antes da guerra, só se aplicaria se a Ucrânia fosse Estado Membro. E a Ucrânia só poderia ser Estado Membro se desistisse de ter disputas territoriais, aceitando perdas de espaço. E antes disso, sem que o tal artigo 5º se aplicasse, a NATO e a Ucrânia poderiam ter feito um acordo de apoio mútuo que poderia, ou não, ter dissuadido os russos de atacarem. Ficção política para alimentar futuros romances de espionagem? Entendo que não e, embora perceba a obstinação ucraniana em não ceder a Crimeia e o Sul do Donbas, a verdade é que esses territórios estavam e estão perdidos.

Seja como for, sem imaginar o que poderia ter sido, a guerra não se comenta como um combate de boxe. A guerra é uma fábrica de mortos, feridos, mutilados físicos e psíquicos, de desalojados, de famílias desfeitas, de órfãos. Da selvagem e politicamente ineficiente agressão russa, poderá resultar uma vitória, mais do que pírrica, com perda territorial para a Ucrânia e custos incalculáveis para a Rússia, Ucrânia e Europa. Não acredito que Putin caia tão cedo ou facilmente. Se a campanha russa da Donbas não for derrotada, a Ucrânia nunca poderá dizer que ganhou a guerra. Nos territórios que a Rússia ocupar haverá “desucranização”, o eufemismo para a evicção forçada de toda a população não russa, na melhor tradição dos ocupantes. Os russos não quererão ter o seu Ulster. Onde ficarem eliminarão, de qualquer forma, a população não russófila para evitar resistência passiva ou guerrilhas.

Conclusão: É lícito imaginar que se a Ucrânia tivesse cedido alguma coisa a guerra poderia ter sido evitada e que o apoio da NATO poderia e deveria ter sido mais precoce e visível. Dificilmente os russos sairão da Crimeia e da Donbas.

A Rússia ainda não perdeu e os tempos estão perigosos. Com a chegada do verão a mobilidade dos blindados na estepe deixa de depender das estradas e as linhas de penetração alargam-se. Vai ser mais difícil para os Ucranianos. A NATO pôs-se, finalmente, a jeito para encontrar um pretexto, o das armas químicas, para entrar militarmente na guerra. Se o fizer, com poderio aéreo e tecnológico muito superior ao da Rússia, a guerra mudará de sentido, mas poderá alastrar-se. Antes disso, o melhor seria se os russos pudessem ser detidos pelos ucranianos onde já estão e desde já negociar, aceitar as perdas irrecuperáveis e começar a reconstrução. E alguém vai ter de a pagar.

Conclusão: A guerra ainda poderá ser longa, a recuperação da Ucrânia e da Rússia será longuíssima e muito cara.