A história da guerra da Ucrânia, mesmo antes de terminar, é já uma lição sobre a relação entre a Europa e a China. Mais tarde ou mais cedo vamos ter de falar disso.

Tal como a pandemia, a invasão russa da Ucrânia veio acelerar, ainda mais, processos que estavam a acontecer. Há vários anos que se fala sobre a dependência ocidental da China, mas agora que ficou à vista o exemplo prático de uma dependência económica, a questão tem muito maior importância. E urgência.

Desde a viragem para a Ásia, de Barack Obama, e a crescente confllitualidade e assumida confrontação com a China, de Trump, que a relação entre as duas potências económicas e os seus principais parceiros se começou a redesenhar. Com a pandemia, a situação agravou-se. Primeiro, descobriu-se que o regime chinês tinha tentado ocultar a emergência de uma grave pandemia que ameaçava espalhar-se, como se espalhou, pelo mundo. Depois, descobriu-se que muito do que era necessário para combater a pandemia estava na China, dos ventiladores às máscaras, passando pelos medicamentos. Mas a ciência não estava, como se viu com as vacinas. Finalmente, o impacto da pandemia nas cadeias de abastecimento vindas da China mostrou a fragilidade que a dependência da China criava. De um momento para o outro, por uma pandemia, ou por outra razão qualquer, o Ocidente podia ficar sem microchips, sem telefones, sem roupa, sem caixilharias de alumínio, sem medicamentos, sem… uma infinidade de produtos essenciais que são produzidos na China. E, não se diz mas alguém há-de pensar, se, por um qualquer motivo, de um momento para o outro o Ocidente, e em especial a Europa, perder o acesso ao mercado chinês, as contas anuais de muitas das principais indústrias europeias, especialmente alemãs, francesas e americanas, vão sofrer enormes prejuízos.

A exibição da dependência da cadeia de abastecimento e dos seus riscos alimentou a narrativa política europeia mais recente. A actual Comissão Europeia tinha tomado posse com uma grande visão geoeconómica: tornar a dupla transição verde e digital em oportunidades para a economia europeia. Daí até às teorias, muito francesas, de autonomia estratégica, foi um instante. A Europa precisava de regular a economia digital e impor a aceleração da transição energértica para ganhar competitividade em ambos os domínios. Falta explicar como é que se passa da liderança regulatória para o domínio industrial, mas essa é uma questão que os mentores da estratégia europeia não têm aprofundado. Excepto quando França, ou quem fala como França, do comissário Breton a várias associações empresariais europeias, diz que é necessário criar campeões europeus que possam competir à escala global. Protecionismo, portanto.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A situação de dependência de máscaras, ventiladores ou mesmo medicamentos era uma situação pontual e não tinha necessariamente que ver com confronto com a China. Já a guerra da Ucrânia é uma lição sobre como a interdependência económica não promove sempre e irremediavelmente a aproximação, nem impede o confronto entre grandes parceiros comerciais.

O que é que isto tem que ver com a China? Tudo. A Europa depende muito do gás e (menos, mas também) do petróleo russo. Mas depende profundamente mais dos produtos que vêm da China a baixo custo, e dos produtos que vende à China, em quantidades industriais. Esta dupla dependência, que também pesa na balança chinesa, é o novo problema de que ainda não se fala. Mas que mais tarde ou mais cedo se terá de falar. E, ao contrário da Rússia, a China é, e quer ser, percebida como um modelo alternativo ao Ocidente. E tenta que a Europa seja autónoma dos Estados Unidos. Leia-se desalinhada.

A China pode não invadir Taiwan, e pode não voltar a massacrar estudantes em Tiananmen, mas a sua falsa neutralidade quanto à guerra já não passa despercebida e, eventualmente, sem consequências. Por outro lado, no Ocidente, e à excepção de quem tem sincero, mesmo que inconfessado, carinho pelo modelo autoritário chinês, até quem olhava com espanto para a performance económica chinesa já não pode ignorar que parte desse sucesso é fruto da dependência europeia das fábricas chinesas. E que oferece a algumas indústrias europeias, desde logo à automóvel, um importantíssimo mercado de que quase dependem.

E agora? Logo se verá. Mas uma coisa é certa, seja por força da necessidade de reduzir dependência e interdependência com regimes potencialmente adversos, seja pela possibilidade de um evento que obrigue governos e empresas ocidentais a cortar com a China, a Europa, tal como os Estados Unidos, vai querer descobrir alternativas à China. Uns querem fazê-lo dentro da Europa. Outros querem reglobalizar rapidamente, mas apenas entre amigos. Ou, pelo menos, não inimigos. Essa foi, para já, a primeira lição que o Ocidente parece ter escolhido aprender sobre a guerra e a relação com a China.

A outra questão é perceber como é que isto tudo se encaixa numa China que nos lê, sabe o que escrevemos e pensamos pubicamente, e compreende as alterações em curso. Se nós antecipamos que vamos querer depender menos da China, Pequim fará o quê? Ignorará o risco? Antecipará o afastamento? Seja o que for, o efeito nas economias europeias do bloqueio gerado pelos incompreensíveis confinamentos em Xangai pode ser um retrato antecipado do custo de desligar da China. Para o Ocidente e para os chineses.