Acaba de ser constituído o Ministério da Coesão Territorial. Aqui vai uma sugestão para a Senhora Ministra, uma proposta de smartificação das comunidades intermunicipais (CIM) como instrumento de coesão territorial.

Vivemos na sociedade da informação e do conhecimento. Nesta sociedade o meu pressuposto de base é simples, todos os territórios têm uma inteligência coletiva tácita ou implícita que os seus principais representantes podem explicitar e desenvolver se forem capazes de resolver os seus principais défices de conhecimento. Não há, portanto, nenhum fatalismo ou determinismo especial com um território, simplesmente, na sociedade do conhecimento a origem dos problemas reside no défice de conhecimento.

Acresce que, para lá do défice de conhecimento, pode acontecer também um défice emocional, ou seja, precisamos de saber até que ponto um determinado território é um “território-desejado” que mobiliza suficiente entusiasmo e adesão para um projeto de futuro. Se, ao contrário, um território for percebido como um mero recipiente, um continente sem conteúdo, a inteligência racional e a inteligência emocional nunca se encontrarão para um grande projeto de futuro, isto é, não haverá inteligência coletiva territorial suficiente e capaz de reduzir os défices de conhecimento já conhecidos. Nestas condições muito dificilmente conseguiremos promover e alimentar um território inteligente e criativo.

As comunidades intermunicipais (CIM) como territórios de referência

As comunidades intermunicipais (CIM), já constituídas e em funcionamento, julgo que merecem uma oportunidade de se instituírem como territórios de referência, mesmo que, em alguns casos, tenhamos dúvidas acerca da sua maior ou menor pertinência. Quando refiro as comunidades intermunicipais estou a pensar, em especial, na arte da composição dos territórios em rede e, nesta composição, o papel da economia digital no cruzamento e na convergência entre o mundo físico de entidades municipais e o mundo digital de plataformas colaborativas intermunicipais.

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Os argumentos para esta arte da composição territorial são fáceis de entender. De um lado, temos a emergência de tendências pesadas que marcarão o próximo futuro – a transição ecológica, a transição demográfica, a transição digital, os grandes riscos, as grandes migrações – de outro, temos a transição dos territórios-zona (T-Z) para os territórios-rede (T-R). É bom não esquecer que vivemos ainda na chamada “logística dos territórios-zona”: a logística partidária, a logística eleitoral, a logística municipal, a logística administrativa, a logística sectorial, a logística associativa, a logística sindical, a logística clientelar, a logística identitária, a logística publicitária e propagandística. São todas “logísticas de fronteira” tendo em vista a inclusão-exclusão, isto é, a lógica de vigiar e punir, e todas são concebidas para premiar a subordinação e punir a desobediência, todas são concebidas pelo poder vertical para reproduzir o território-zona. Os custos de transação destes T-Z são religiosamente vigiados pois eles são uma fonte privilegiada de lucro e vantagem no sistema de poder em que vivemos.

Ora, no que diz respeito aos territórios em rede, como é o caso recente das CIM, ninguém sabe ao certo como acontecerá, em cada caso, a fusão entre o mundo físico e o mundo digital. Sabemos apenas que esta fronteira é cada vez mais porosa e movediça e que esta transição irá afetar a constelação de poderes e as cadeias de valor de todas as dimensões, que estão há muito acantonadas nos territórios-zona. Veja-se, por exemplo, os casos Uber e AirBnB e a procissão ainda só vai no adro. Outros conflitos do mesmo género já estão em fila de espera à espreita de uma oportunidade para eclodir.

As CIM, de fresca data, não têm ainda a legitimação e a certificação da história longa, por isso elas precisam urgentemente de fazer prova de vida. Há duas áreas onde essa urgência salta à vista, uma vez que são duas potenciais vítimas da virtualização da sociedade: em primeiro lugar, o modo como reocupamos um território cada vez mais “desertificado” de serviços públicos e, em segundo lugar, o modo como promovemos e reorganizamos um mercado de trabalho cada vez mais rarefeito. Se a revolução tecnológica e digital abre um campo imenso de possibilidades e oportunidades é prudente e sensato que as CIM promovam duas outras “pequenas revoluções”: em primeiro lugar, ao lado de uma economia de produtos globalizada é necessário recriar uma economia de recursos e produtos “relocalizada”, em segundo lugar, ao lado de uma economia do emprego estandardizado em contração é necessário recriar uma economia do trabalho feita por medida, num universo laboral onde o fracionamento do mercado de trabalho, a pluriatividade e o plurirrendimento passem a ser uma norma social plenamente reconhecida. Há muito trabalho a fazer nestas duas áreas. Neste particular, os territórios-zona, demasiado maduros e conservadores, já estão a jogar à defensiva, enquanto os territórios-rede e as CIM, ainda verdes e muito titubeantes, são uma promessa que precisa de se afirmar rapidamente como território-desejado. E é aqui que entra a metodologia para a smartificação do território.

Uma metodologia para a smartificação do território CIM

Aqui chegados, um território inteligente e criativo é tão crítico como necessário nas áreas de baixa densidade com graves problemas de coesão territorial. Nestes casos a transformação digital é imprescindível, mas a conexão digital enfrenta muitas dificuldades para promover o círculo virtuoso do desenvolvimento. É certo, a conexão digital reduz a invisibilidade do problema, trá-lo para o espaço público, faz ruído à sua volta, chama a atenção do poder político que, assim, fica confrontado com as suas próprias responsabilidades. Por outro lado, as comunidades online precisam ainda de fazer prova de vida, isto é, não podem tratar a realidade como um mero epifenómeno, um sinal eletromagnético ou uma série de eventos que se consome com grande voracidade. Dito de outro modo, as comunidades virtuais devem sair do “modo representação” ou do “modo personagem” se quiserem que a sua proposta virtual seja convertida em ação real e efetiva.

Nesta sociedade do conhecimento como criar, então, um território inteligente e criativo, um território-rede dotado de uma inteligência coletiva territorial onde o todo é maior do que a soma das partes? Se quisermos, como criar uma estratégia de smartificação do território? Eis, pois, a minha proposta para o decálogo da smartificação.

Em primeiro lugar, é necessário encontrar uma “comissão promotora” que seja representativa e competente e capaz de suscitar o entusiasmo inicial para a ideia de um território-rede-desejado,

Em segundo lugar, é necessário delimitar um “território de partida”, um território de referência CIM, que possua algumas marcas distintivas a partir das quais possa irradiar a primeira vaga de mobilização e adesão,

Em terceiro lugar, é necessário eleger os “sinais distintivos territoriais”, a distinção territorial, que seja a base de uma ação coletiva inovadora e fazer, se for caso disso, um primeiro ajustamento nos limites do território CIM,

Em quarto lugar, é necessário constituir uma estrutura de missão, um ator-rede ou curadoria territorial que substitua a comissão promotora e prepare a estratégia e o programa operacional da CIM,

Em quinto lugar, é necessário que a curadoria territorial conceba a “iconografia do território CIM e o seu mapeamento gravitacional”, não apenas para suscitar a adesão simbólica e identitária dos atores envolvidos no projeto, mas, também, para criar a base narrativa de uma estratégia de comunicação e marketing,

Em sexto lugar, é necessário conceber uma “plataforma colaborativa CIM” para aumentar a interação e a conexão colaborativas entre todos os parceiros do projeto, em especial, as diversas “comunidades inteligentes” que integram o território CIM,

Em sétimo lugar, é necessário promover a constituição de uma “matriz de comunidades inteligentes” no interior da CIM, cada uma funcionando de acordo com uma plataforma própria e em estreita ligação com a meta-plataforma CIM,

Em oitavo lugar, é necessário elaborar uma “economia de rede e aglomeração CIM” que monitorize a aplicação das medidas de política e a sua efetividade, os seus efeitos externos positivos e negativos, bem como a formação e repartição das novas cadeias de valor no espaço interno e externo das CIM,

Em nono lugar, é necessário elaborar sobre o “valor cénico do território CIM e ensaiar uma espécie de coreografia territorial” para o território CIM através de uma estratégia apropriada de marketing digital, em exclusivo ou em articulação com outras CIM,

Em décimo lugar, é necessário eleger os “embaixadores do território CIM” que serão os porta-vozes da distinção territorial do território, da sua imagem de marca e destino de eleição.

As primeiras fases são fundamentais e, em especial, a seleção dos sinais distintivos territoriais (SDT) ou distinção territorial que é essencial para determinar a natureza e a inteligibilidade do território CIM, isto é, a qualidade de toda a interação e conexão digital e material posterior.

Estrutura e sistema, ator-rede e curadoria territorial

Infelizmente, estrutura e sistema são conceitos pouco considerados e praticados, hoje em dia, quando se fala de políticas públicas e dos seus múltiplos efeitos externos. Nas fileiras corporativas em que hoje se constituem muitas das práticas administrativas e governativas, os efeitos externos são subestimados e negligenciados e, quase sempre, os efeitos negativos são socializados pelos contribuintes. Não há nenhum software específico para absorver ou canalizar os efeitos dispersivos das medidas de política e assim controlar a efetividade da política de coesão territorial. Quer dizer, tanto os efeitos internos (as internalidades) no território de referência como os efeitos externos (as externalidades) nos territórios adjacentes não são controlados ou monitorizados por nenhuma entidade pública ou privada, ninguém procede nesse sentido e, assim, os efeitos externos acabam mesmo por se fazer sentir em ordem dispersa com pouco ou nenhum efeito de aglomeração.

Se olharmos à nossa volta, a falta de mapeamento gravitacional impede-nos de ver como funcionam no terreno as várias cadeias de valor, em especial, as mais pequenas. Só conhecemos as redes centralizadas ou verticais, com maior visibilidade, não conhecemos ou conhecemos mal as redes descentralizadas e distribuídas e, assim, perdemos uma boa parte dos efeitos arteriais e capilares dos pequenos investimentos e empreendimentos. Ora, nas CIM e nas pequenas vilas e cidades do interior são os pequenos empreendimentos e os seus efeitos capilares e reticulares que predominam.

Regresso aos défices de conhecimento e observo o que se passa à nossa volta. Nos últimos anos foram criadas em muitas regiões do país, com o apoio de fundos europeus e nacionais , o que poderíamos denominar como o “embrião de comunidades inteligentes”: parques de ciência e tecnologia, centros de investigação e desenvolvimento, polos tecnológicos, centros de negócios, ninhos de empresas, incubadoras e aceleradoras de startup, espaços de coworking, uma rede de smart cities, uma rede de living labs, uma rede nacional de associações de desenvolvimento local, uma rede rural nacional, sociedades de capital venture, uma Startup Portugal, uma associação de business angels, hubs tecnológicos e criativos, para além de muitas associações empresariais de geometria muito variável. Pensemos, por um momento, nos imensos efeitos difusos e dispersivos, de duvidosa sustentabilidade, com origem em todas estas presumidas comunidades inteligentes, pensemos no seu impacto aglomerativo e coesivo sobre os territórios de baixa densidade e ficamos, de imediato, com um amargo de boca no que diz respeito à sua eficácia, eficiência e efetividade. Com algumas exceções, como é evidente.

E porque é que isto acontece? Por faltar, justamente, um ator-rede ou uma curadoria territorial que cuide de saber e praticar que o todo é maior que a soma das suas parcelas. Não há coesão territorial e smartificação das CIM que resistam a estes efeitos difusos e dispersivos. Muitos dos efeitos externos das entidades referidas não são monitorizados e, mais tarde ou mais cedo, acabam por perder-se na secura e na fragilidade dos tecidos empresariais municipais e intermunicipais.

Notas Finais

Em matéria de coesão territorial, sem uma conexão inteligente protagonizada por um ator-dedicado, o ator-rede, e sem uma estrutura de missão, a curadoria territorial, que cuide dos bens comuns da CIM, não teremos resultados nem redução da vulnerabilidade territorial. Para reforçar esta asserção e a necessidade de uma curadoria territorial para as CIM lembro, ainda, os impactos das “grandes transições” já antes referidas. Doravante, as tecnologias digitais serão um poderoso instrumento de governação territorial, mas elas terão de fazer prova de vida in situ e não apenas ex situ sob pena de a tão propalada coesão territorial ser pouco mais do que um logro.

E, já agora, uma última sugestão: por que não, em cada CIM, uma “escola tecnológica e digital”, para onde convergiriam as comunidades inteligentes antes referenciadas, à semelhança das antigas escolas industriais e comerciais do século XX? E por que não aproveitar o especial networking das instituições de ensino superior que estão particularmente vocacionadas para poderem funcionar como instituições-plataforma, pois podem funcionar em canal aberto com a multidão, como uma placa giratória de problemas, projetos e colaboradores, em múltiplas formas e formatos de crowd sourcing e crowd funding, e em regime inovador de “univercidade e pluriversidade”.

Finalmente, se houver muitas dúvidas acerca do dispositivo CIM, teremos sempre à nossa disposição as antigas capitais distritais e as futuras capitais regionais, isto é, uma proposta de smartificação para as cinco regiões administrativas do próximo futuro.