Lembro-me bem dos tempos que se seguiram, em 1989, à fatwa lançada pelo Ayatollah Khomeini – “aiatolo”, dizia-se nesses tempos, tempos ainda ignorantes do que se estava a preparar, apesar do choque – sobre Salman Rushdie a 14 de Fevereiro, por causa da publicação dos Versículos Satânicos. Em Portugal, que eu saiba, não houve manifestações de rua. Mas um poeta conhecido de alguns, convertido ao Islão, apoiou a fatwa (o Cat Stevens possível). E o medinho português, é claro, aproveitou para dar um ar da sua graça. Numa livraria, que já não existe, perto de uma casa onde já não vivo, o empregado perguntou-me, através dos seus bigodes farfalhudos, se eu estava interessado no livro, que retirou furtivamente debaixo do balcão, onde logo, depois da minha negativa, e como se estivesse a vender pornografia há setenta anos atrás, com um gesto clandestino o voltou a colocar.

Noutros lugares, é claro, foi diferente. Por todo o mundo islâmico, e em todos os lugares onde a comunidade islâmica era numerosa, multidões saíram à rua para apoiar a fatwa. O grande especialista do Islão Malise Ruthven publicou em 1990 um livro, A Satanic Affair, sobre o que estava em jogo para os seguidores de Khomeini, notando, entre outras coisas, a importância da questão sexual. No início do livro, conta o seu contacto, em Londres, a 27 de Maio, com manifestantes que apoiavam a fatwa. No meio de incitamentos ao assassinato de Rushdie, falava-se, a propósito do livro, de conspiração sionista. Dois deputados trabalhistas – um deles o notório Keith Vaz, que viria a renunciar ao seu cargo em 2007, devido a um escândalo com prostitutos masculinos e cocaína – discursaram, apoiando a multidão e condenando Rushdie. Não custa imaginar que Hadi Matar, o homem que, a 12 deste mês, esfaqueou várias vezes Salman Rushdie quando ele se preparava para falar no estado de Nova Iorque, os tivesse aplaudido e juntado a sua voz à da turba enfurecida.

O que é certo é que o Irão, pretendendo falar em nome de 1,5 mil milhões de muçulmanos, não está nada descontente com o feito de Hadi Matar. A culpa do esfaqueamento, lembrou um responsável iraniano, no seguimento de artigos entusiásticos na imprensa do regime, é do próprio Rushdie e dos seus apoiantes, dada a manifesta impiedade que exibem. O mesmo, de resto, devem pensar os simpáticos talibãs do Afeganistão, que, graças à catastrófica retirada das forças americanas e outras organizada por Joe Biden, acabam de celebrar um ano de reconquista do poder, no meio da mais extrema miséria, do terror e de discriminações de vária espécie.

É curioso notar que esta gente toda tem merecido o desvelo de Vladimir Putin, no exacto momento em que leva a cabo a sua tentativa de extermínio dos ucranianos. O seu círculo de dilectas amizades estende-se, além disso, à Coreia do Norte de Kim Jong-un, outro adorável regime que a todos nos maravilha pelos seus feitos em prol da humanidade. E nem sequer falo da China, lugar dos maiores morticínios do século XX, já que é preciso sempre, tendo em conta a longevidade, descontar alguma coisa ao mais velho despotismo da história humana. Toda esta gente faz muita gente. Muita gente que despreza a democracia até à ponta dos cabelos e que, quando é preciso, sabe bem entender-se. Afinal de contas, independentemente das diferenças, esse ódio pela democracia tem um forte poder unificador. Há qualquer coisa de natural nestas simpatias que se tecem.

São afinidades electivas que se estendem aos países democráticos. Pensem no PCP, por exemplo. Alguns dos regimes que referi, merecem-lhe simpatia manifesta. Outros não lhe suscitam qualquer crítica de maior. O que se vê sobretudo se compararmos a sua atitude para com estes regimes com aquela que têm face aos países democráticos. Destes últimos, simbolizados pela sua união na NATO, é que vêm todos os males do mundo. Representam, no seu conjunto, o acto puro da agressão e da destruição universal. Falo do PCP como exemplo. Vária outra gente pensa exactamente assim: o ódio às democracias – junto, é verdade, com um velho fascínio pelo poder brutal – é a única coisa que, em certos casos, mobiliza o pensamento e determina a posição política.

Em nenhum outro caso se vê isso tão bem como na atitude a respeito de Israel. É uma coisa, por acaso, que penso há muito tempo: Israel concentra em si todo o ódio que essa gente tem à democracia. Até por se encontrar rodeada por países que de democrático nada têm, os inimigos da sociedade aberta, para retomar a expressão que Popper foi colher a Bergson, celebrizando-a, tomam-na como alvo preferencial. Mais do que o anti-semitismo propriamente dito, é o visceral ódio à democracia que está por detrás desse desejo – comum a Saramago e a Boaventura Sousa Santos, entre muitos – que Israel desapareça do mapa. Até porque é uma democracia que sobrevive nas mais adversas circunstâncias e que não desiste de lutar pela sua sobrevivência. Para os camaradinhas totalitários, portanto, um mau exemplo, um péssimo exemplo. Para nós, com todos os seus problemas, um excelente exemplo – como a Ucrânia. Se quisermos que a sociedade aberta sobreviva aos seus inimigos, é claro.

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