Vendo bem, não seremos tão (“exemplarmente”) saudáveis como talvez imaginemos. Por mais que, aos nossos olhos, não há como não termos saúde mental. Apesar das nossas “fobias”. Dos nossos actos impulsivos. Das nossas fúrias. Das formas trapalhonas como gerimos as nossas relações ou os nossos filhos. Da maneira desregrada como trabalhamos. Ou, até, de algumas fragilidades de caráter que acabamos por ter, mas que queremos que se mantenham clandestinas aos olhos dos outros. Funcionamos. Logo, somos saudáveis. A ideia será mais esta.  E não é tão linear como pode parecer. Afinal, apesar do excesso de peso, da forma como lidamos com a saúde oral, do modo como não dormimos ou como conviemos com hábitos tabágicos ou com o consumo de álcool, por exemplo, também, do ponto de vista do nosso corpo, nós entendemos ser saudáveis até que as nossas dificuldades não obstruam as nossas competências. O que, por outras palavras, quer dizer que enquanto o corpo não se intromete entre nós e a vida, e não nos atrapalha o nosso dia a dia, não seremos doentes. Será assim também que acontece também com a doença mental. Mas porque será que, devagarinho, se vai instalando uma “sensação” de vivermos numa sociedade de ataques de pânico?

Há uma diferença entre o medo, o pânico ou o terror. O medo será uma emoção sábia.  Aparentemente “automática” (porque acontece em tempo real e parece não ser despertada por um pensamento sobre o qual se discorre). E sinaliza um acontecimento ou, por exemplo, uma pessoa que, duma forma não muito compreensível quando se vive, nos ameaça, nos atrapalha ou “atropela”. O medo não é nem friamente racional nem completamente estúpido. Surge na exacta dimensão de quem o sinaliza ou daquilo que evoca. Quer em função da sabedoria dos nossos antepassados, com quem o aprendemos. Ou das nossas experiências de vida. Por mais que a forma como ele se manifesta pareça pouco clara e quase grosseira. Sobretudo se atendermos à forma como ele parece gerar um efeito semelhante ao de uma mancha de óleo, acabando por sinalizar tudo aquilo que, de perto ou de longe, se associa ao acontecimento que o precipitou. Seja como for, pela sua natureza – muito semelhante a um alarme ou ao próprio sistema imunitário – o medo comporta-se como um seguro de vida. “Acende” uma luzinha amarela. E leva-nos a reagir, protegendo-nos; sem pensar. Mesmo depois dele surgir. O que acaba por ser complicado, porque quanto mais fugimos de (entender) um medo mais ficamos presos a ele.

Tal como o medo, o terror acaba por ser, também, uma experiência que sinaliza um perigo. Sendo que o terror se associa a uma experiência que, por aquilo com que ela nos avassala, sugere um perigo muitíssimo maior; uma experiência de “quase morte”. O que, considerando a forma como reagimos, nos leva a parecermos quase glaciais. Frios, no modo como parecemos silenciar as nossas reacções mais ansiosas. Instintivamente paralisados ou cognitivamente muito lentificados. Como se isso fosse a contrapartida para sobreviver. E se fizesse acompanhar por uma quase ausência de força para atacar ou para fugir (ao contrário do que  acontece com o medo).

O pânico é um pouco diferente. Surge, aparentemente, “do nada”. Porque cresce e irrompe daquilo que se guarda e se matuta. Daí que pareça ter a configuração duma espécie de “ataque”. E surja duma forma tão torrencial que faz com que se sinta, primeiro, uma ânsia que se insinua e que persiste. Depois, uma aflição. E, finalmente, um “boom” de desespero. Que faz com que a cabeça pareça “bloquear”, a ponto de se perderem muitas das coordenadas daquilo que se é ou da nossa relação com as rotinas, com o espaço e com o tempo. E se sintam sintomas, como um aperto no coração, que fazem com que se recorra a serviços médicos de urgência. E que se instale quase um medo de ter medo. Que leva a que o pânico se transforme numa espécie de vulto que se insinua, permanentemente. E atormente. Quase sem descanso. Como se à mínima descontracção surgisse um descontrole. E o pânico voltasse.

É claro que as experiências de pânico como as de terror deixam uma espécie de cicatriz na nossa memória. Pela intensidade (e pela surpresa) com que nos assustaram, condicionam o nosso dia a dia. E impõem-se, limitando-nos relações, rotinas e experiências que fujam ao nosso controle. A questão que se coloca, passa por nos perguntarmos por que motivo parecem os ataques de pânico ter-se banalizado tanto. A ponto de serem um argumento tão transversal às mais diversas idades. Como se – ao contrário daquilo que, dantes, se passava com a loucura (associada a um aparente corte com a realidade) e, depois, com a histeria (onde o sentido de realidade sofria alguns curto-circuitos dissociativos) – os ataques de pânico representassem, nos dias de hoje, o compromisso mais banal e mais tolerável entre a saúde e a doença mental.

Porque é – desde as crianças aos adolescentes, às pessoas crescidas – os ataques de pânico parecem tão frequentes? Porque talvez vivamos num tempo muito pouco amigo da palavra. Porque trabalhamos demais, vivemos sob um clima de stress sufocante e fomos muito pouco educados para a partilha de tudo aquilo que, dentro de nós, são dores (que nos ensinaram, sobretudo, a guardar para nós, em nome de uma aparência que não condiz com a verdade). Porque fomos alimentando a ideia que somos tanto mais saudáveis quanto mais controlados nos tornarmos. Porque fomos aceitamos que “queixinhas”, lamúrias, acessos de “mau feitio” e, até, as birras de todos os dias nos são interditas ou, na melhor das hipóteses, são “socialmente incorrectas”. Porque vamos perdendo as dimensões lúdicas de aprendermos a ser “agressivos com lealdade e boas maneiras”. Porque, em resumo, estamos mais vezes mais sozinhos do que devíamos. E fazemos, exageradamente, de panela de pressão. Claro que, depois, há sempre uma gota de água que faz com que o corpo reaja, de rompante, por nós a uma aflição, e nos surpreenda. O que faz com que, depois dum ataque de pânico, se fique preso a ele, por muito, muito tempo. É claro que, sinalizar o “ataque” é quase incontornável. E é compreensível que só aí tenhamos coragem para assumir que o compromisso entre sermos saudáveis e um bocadinho doentes fica abalado. Quando, no fundo, trabalhámos, sem querer, para isso, mais do que pode parecer. E continuamos, de certo modo, a fazê-lo, a partir do momento em que a nossa vida se afunila em torno do pânico. (Sem percebermos, por exemplo, como lá chegámos.) Ou quando o tomamos como um labirinto sem porta de saída. Que ele não é.

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