Os protestos das últimas semanas em várias cidades Chinesas mostram-nos mais uma vez que, em grande parte do discurso público e mediático vigente, a democracia ainda é subvalorizada. Não falo do ideal abstracto de democracia, que todos dizem admirar. Falo, isso sim, da sua prática concreta e do apreço pelo funcionamento das instituições. Na última década, qualquer periódico internacional, ciclo de conferências ou departamento universitário respeitável promoveu dezenas de debates sobre uma suposta “crise das democracias”. Os eventos assim o pareciam ditar: primeiro a Grande Recessão e a crise das dívidas soberanas, os défices políticos da União Europeia, seguidos da crise dos refugiados, do voto do Reino Unido para sair da U.E., a eleição de Donald Trump para a Casa Branca e o crescimento eleitoral de partidos políticos populistas de direita radical. Todos estes eventos, na narrativa construída, fariam parte de um conjunto de acontecimentos com raízes comuns que revelariam que as democracias Europeias e do continente Americano estão profundamente em crise.

Simultaneamente, um outro discurso foi também presença assídua nestes debates: as autocracias esclarecidas seriam não só mais eficientes do que as democracias, mas também melhores promotoras dos interesses dos seus cidadãos. Assim o demonstraria, de acordo com os prosélitos desta teoria, o exemplo de Singapura e o impressionante crescimento Chinês. Esta ideia, de resto, nada tem de novo. A defesa de um regime eficiente governado por elites competentes e inteligentes é uma das mais velhas críticas ao ideal democrático. Tal regime é apresentado sistematicamente como alternativa às instituições democráticas, comummente percepcionadas como ineficientes, confusas e corruptas. Novamente em voga, os novos intelectuais da teoria política, admiradores da técnica, da tecnologia e da epistocracia, actualizaram a ideia sob a vestes da tecnocracia. O sucesso destas ideias não se resume apenas às elites. Pelo contrário, têm amplo apoio na opinião pública. Em Portugal, por exemplo, segundo dados do European Values Survey, analisados aqui por Pedro Magalhães, quase dois terços da população não recusa a ideia que seria positivo ser governado por um líder autoritário forte que não tenha de lidar com parlamentos e eleições. Uma percentagem ainda maior de Portugueses está relativamente confortável com a ideia de um governo de tecnocratas: mais de 70% não rejeita que sejam os especialistas, e não o governo, que devem tomar as decisões que estes considerem ser as melhores para o país.

Serão as instituições autoritárias mais eficientes a governar que as democráticas? Em que dados nos podemos basear para dizer isso? Certamente, não podemos confiar nas estatísticas oficiais que os próprios governos autocráticos divulgam. Afinal de contas, se até em democracia muitas vezes desconfiamos que há dados massajados, os governos autoritários têm muitos mais incentivos – como forma de propaganda para a própria sustentação do seu regime – em divulgar dados que não correspondem à realidade. Pior, se em democracia a informação circula livremente, podendo a imprensa e os cidadãos utilizar a liberdade de expressão para verificar (e contestar) a veracidade dos dados, o espaço para questionar as agências governamentais em regimes autoritários é muito reduzido. Um estudo recente do economista Luis R. Martinez, publicado numa das melhores revistas científicas da área, analisa o crescimento anual médio da densidade de luzes noturnas entre 2002 e 2021 – um indicador altamente correlacionado com o crescimento económico e que pode ser aferido por imagem de satélite, sem necessidade do governo de cada país. O autor compara esses números com as estatísticas oficiais de crescimento do PIB lançadas pelos vários governos.

Os resultados são esclarecedores. Enquanto nas democracias as estatísticas oficiais correspondem, de forma razoável, às estimativas de crescimento baseadas nas luzes noturnas, nos regimes autoritários o exagero é sistemático. O autor conclui que, em média, os regimes autoritários insuflam as estatísticas oficiais do PIB em cerca de 35%. Este resultado, de resto já corroborado por outros trabalhos, é particularmente interessante no caso Chinês, onde a diferença entre os números reportados pelo Partido Comunista e as estimativas realizadas utilizando a densidade das luzes noturnas são maiores. Utilizando este medidor alternativo de riqueza, não sujeito a controlos políticos, o crescimento real chinês das últimas duas décadas foi menos de metade do que divulgam as estatísticas oficiais.  Visto assim, o crescimento económico Chinês continua ainda a ser extraordinário, mas não muito diferente do crescimento de países democráticos como o Gana ou parcialmente livres como a Índia. O gráfico abaixo, da autoria da revista The Economist, resume de forma elegante as conclusões do estudo.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Fonte: The Economist

A reacção por parte do governo Chinês à pandemia SARS-COV-2 seguiu mais uma vez esta lógica de controlo e manipulação de informação, com consequências praticamente impossíveis de determinar. No mundo real, não existem contrafactuais. Num momento inicial, no início de 2020, o governo Chinês negou ao máximo todos os relatos sobre a veracidade e gravidade do vírus que surgiu na província de Wuhan. Depois, divulgou números que simplesmente não são credíveis: até hoje, o governo Chinês diz que apenas morreram 5235 pessoas num país com mais de 1400 milhões de habitantes! Por comparação, Portugal, país com 10 milhões de habitantes, teve um número de mortos cinco vezes maior, da ordem dos 25 mil. Finalmente, o governo Chinês implementou e insistiu em políticas de confinamento draconianas, fazendo com que milhões de pessoas não possam sair de sua casa, mesmo para tarefas básicas como ir trabalhar ou ao supermercado. Os infectados tiveram ainda de fazer quarentena em locais próprios controlados pelas autoridades. Cidades inteiras podem ser confinadas em poucas horas, mesmo que por um número reduzido de casos com alguns confinamentos a durar meses. Para circular em espaços públicos, como centros comerciais, cada cidadão tem de realizar testes PCR de validade limitada e colocar os resultados em bases de dados governamentais, que, utilizando estes dados em conjunto com os sinais dos telemóveis, permitem ao governo mapear exactamente todo o historial de movimento, circulação e contactos de cada cidadão.

Quais as motivações para esta política tão apertada de confinamentos rigorosos e de “covid-zero”? Existem várias razões. Por um lado, o nacionalismo do governo Chinês não permite admitir publicamente que as suas vacinas são um fracasso ao lado daquelas descobertas nas democracias liberais capitalistas. Por outro lado, a política contra a Covid-19 funcionou como mecanismo de propaganda, em que o governo decidiu implementar uma política diferente das seguidas pelas “democracias ocidentais” para mostrar que poderia ser melhor e mais eficiente do que estas a lidar com crises de saúde pública. Neste momento, depois de feitas estas escolhas, é difícil ao poder Chinês salvar a face e alterar completamente a sua política de combate à pandemia sem potenciais repercussões sobre a sua posição de poder. Estamos já a assistir uma mudança parcial, mas esta é-o apenas na medida necessária para acomodar os protestos da rua.

Não é de estranhar, pois, que, depois de quase três anos, muitos Chineses não aguentem mais este ambiente verdadeiramente distópico. Em dezenas de cidades por todo o país, de Shangai e Pequim e de Xinjiang a Guangzhou eclodiram protestos, muitas vezes organizados e protagonizados por jovens, a exigir liberdade de movimento, de expressão e o fim das amarras da política covid-zero. Nas últimas décadas, protestos por parte da população ocorreram com alguma frequência na China. No entanto, estes ocorreram de forma restrita, atomizada e focada nas autoridades locais ou regionais. Essa foi, na verdade, uma forma astuta do poder central Chinês sobreviver politicamente no período pós-Tiananmen, descentralizando as políticas públicas, a autoridade e, consequentemente, os protestos. A política covid-zero veio mudar este paradigma. Sendo uma política de âmbito nacional promovida pelo governo central fomentou a nacionalização dos protestos e da oposição ao Partido Comunista Chinês central. Agora, é Xi Jinping e o seu governo que são questionados, não apenas actores menores, regionais ou locais. Existe uma grande coligação de pessoas – desde estudantes universitários a trabalhadores em dificuldades económicas pelos confinamentos excessivos – que está veemente contra a continuação deste status quo. Xi Jinping encontra-se agora perante o Dilema do Ditador: reprimir ainda mais a população, agravando as suas frustrações, ou responder aos seus pedidos, mostrando que, afinal, a política opressiva dos últimos três anos não era necessária, como também é possível que os cidadãos alcancem mudanças políticas se se mobilizarem politicamente, aumentando o risco de novas mobilizações no futuro. Por ora, Xi parece ter ido pelo caminho de levantar levemente e progressivamente algumas das restrições. Os próximos meses, dir-nos-ão se isto é suficiente.

A informação sobre a evolução económica da China, assim como a forma autoritária de lidar com o Covid, mostram, uma vez mais, que as democracias são muito mais resistentes a eventos disruptivos e conflitos sociais do que as ditaduras. As democracias permitem a utilização da informação e da liberdade de expressão para construir soluções. As próprias instituições da democracia permitem aos governos lidar com críticas e com a oposição fundamentada a políticas públicas, sem ter de temer que os cidadãos questionem o próprio regime em que vivem. Permitem também às sociedades lidar com as suas divisões profundas, sem terem de recorrer a instrumentos de violência e opressão. Assim, a próxima vez que lhe disserem que as democracias estão em crise, pense se esse não é, ao invés, o maior sinal da sua resistência.