Uma coluna num jornal obriga-nos a leituras que não são propriamente um prazer e, através delas, ao contacto com espíritos que não nos inspirariam, em qualquer outra situação, o mínimo de interesse ou atenção. Há muitas leituras deste tipo, mas é preciso escolher. E o critério para a escolha é, obviamente, a particular saliência dos textos e o renome dos seus autores. Há, com efeito, obras-primas em todos os géneros, incluindo a arte do embuste. O artigo de Boaventura de Sousa Santos, publicado no Público de 10 de Março, Para uma autocrítica da Europa, pertence a esse género selecto. Dir-me-ão que é inútil perder tempo com isto, já que toda a gente conhece o talento de Boaventura de Sousa Santos no capítulo. Permito-me discordar. Há lições de leitura que transcendem as idiossincrasias específicas do autor, permitindo-nos talvez compreender melhor formas de pensamento que gozam de uma indisputável influência na sociedade.

O que nos diz Boaventura de Sousa Santos sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia? Espantosamente, uma única coisa: a culpa da guerra é da exclusiva responsabilidade dos Estados Unidos. Vale a pena citá-lo. De há muito que a Rússia vinha “tornando claras as suas preocupações de segurança”, “preocupações legítimas” face aos Estados Unidos. A sua atitude era, assim, forçosamente defensiva, contrastando fortemente com a posição ofensiva dos Estados Unidos. Com efeito, a agressão vem daí. “Os EUA visam consolidar zonas de influência a todo o custo, que garantam facilidades comerciais para as suas empresas e o acesso às matérias primas.” Explicitada assim a oposição entre agressão (EUA) e defesa (Rússia), podemos ser ainda mais explícitos: “É preciso saber mais para perceber o que se está a passar na Ucrânia? A Rússia provocada a expandir-se para depois ser criticada por fazê-lo”. Resta, por fim, a Europa. Ela ocupa, face aos Estados Unidos, “a condição de parceiro menor” que “se apressa a armar nazis”, obedecendo às “três oligarquias” que dominam os EUA: “o complexo militar-industrial; o complexo do gás, petróleo e mineração; e o complexo bancário-imobiliário”.

Respondendo atabalhoadamente a um editorial do director do Público, Manuel Carvalho, que o criticava, Boaventura de Sousa Santos acusa os nossos tempos de não serem receptivos ao “pensamento da complexidade” que diz praticar, não desistindo de “ser sociólogo da [sua] circunstância”. Escapa completamente ao meu entendimento como pode considerar-se “pensamento da complexidade” a utilização do mais robótico, esquemático e maniqueísta sistema conceptual, mas o ilustre sociólogo, ou por ele algum dos seus inumeráveis discípulos, elucidar-nos-á sem dúvida um dia – talvez com a ajuda do seu célebre conceito de “epistemologia do Sul” – sobre este mistério. Entretanto, vamos a outras coisas.

Eis algumas das estratégias de Boaventura de Sousa Santos que exemplificam uma maneira de pensar mais geral na qual ele se inscreve. A mais notória é a inversão das relações causais. A Rússia invade a Ucrânia? Se o fez foi por pressão dos Estados Unidos, que são a causa remota da invasão russa, sendo a causa próxima o próprio governo ucraniano, ao serviço dos E.U.A. Esta inversão das relações causais assenta num princípio central do pensamento do sociólogo: aquilo que poderíamos chamar o princípio da causa única. Aconteça o que acontecer, a culpa é sempre dos E.U.A. e, mais genericamente, do Ocidente. Apenas os E.U.A. são dotados de actividade, todos os outros povos se vêem limitados à passividade ou, no melhor dos casos, à reactividade, o que lhes garante uma perfeita inocência. Sendo assim, como é óbvio, Putin não pode ser responsável, em nenhuma circunstância, pela invasão da Ucrânia. Os únicos verdadeiros responsáveis são os E.U.A., que se vêem atribuir os predicados da divindade, embora maléfica, à imagem do génio maligno de Descartes: causa única e pura actividade.

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Não é difícil ver aqui uma versão, nem sequer particularmente sofisticada, das teorias conspiratórias em geral. Também elas se regem pelo princípio da causa única. Todos os males do mundo são o produto do grupo que se escolhe alucinatoriamente como dotado de um poder causal infinito: os judeus, a maçonaria, o Clube de Bilderberg, o que quiserem. Para Boaventura de Sousa Santos, na espécie de argumentário teológico que atravessa o seu pensamento, a causa única alucinada são os E.U.A., com os três “complexos” que refere no artigo, espécie de Santíssima Trindade do Mal. Há, efectivamente, qualquer coisa de teológico na maneira de pensar do sociólogo, que busca (e, aos seus olhos, descobre) algo que se encontra por detrás de tudo neste mundo visível, manobrando-o a seu bel-prazer.

O resultado de tudo isto é que o acontecimento empírico se dissolve por inteiro no discurso “explicativo” de Boaventura de Sousa Santos. A realidade é perfeitamente evacuada, torna-se um deserto plano que é ocupado por palavras apenas, as palavras que a sua teoria conspiratória permite. Querem uma prova? O nome de Putin não aparece uma só vez em todo o artigo. Convenhamos que é obra, num texto dedicado à invasão da Ucrânia. Mas a omissão é tudo menos acidental. Não só a referência a personagens empíricas atentaria contra a dignidade da teoria, contaminando-a de impurezas várias, como o esquema teológico que orienta o seu pensamento dispensa qualquer referência directa à realidade. O particular, como indiquei antes, dissolve-se por inteiro no discurso teológico da causa única.

Dito de outra maneira: Boaventura de Sousa Santos recusa-se terminantemente ao exercício da faculdade de julgar. Kant definiu a faculdade de julgar, nas suas múltiplas formas, como o poder de subsumir o particular sob o geral. É um talento particular que não pode ser ensinado – ou se tem ou não se tem –, mas que pede para ser exercido. Ignoro perfeitamente a que se deve a recusa de Boaventura de Sousa Santos de o exercer, o que há nela de voluntário ou de involuntário. Limito-me a constatar que o seu artigo foge da aspereza da referência à realidade empírica – ao particular – como o Diabo da Cruz. É que não é só Putin que brilha pela ausência no seu texto. Os ucranianos – que ele afirma não deverem participar nas negociações de paz em curso – e os russos, enquanto indivíduos, também. Por decisão voluntária? Por falta do tal talento? Ignoro por inteiro, como já disse.

Deixei propositadamente para o fim aquilo que mais me chocou no texto – e, a bem dizer, a única coisa que verdadeiramente me surpreendeu nele: a total falta de empatia com o sofrimento humano que ele revela. Seria a última pessoa a defender que um artigo de jornal se deva dedicar à exibição de bons sentimentos, um género que eu próprio procuro a todo o custo evitar. Mas há casos em que a empatia é um elemento estruturador da objectividade e em que a sua ausência revela uma incapacidade de entender e capturar o objecto sobre o qual se pensa. Como se pode escrever sobre a invasão da Ucrânia sem reflectir por um só instante no imenso e terrível sofrimento humano com que somos diariamente confrontados através das imagens que vivem no nosso espírito? Como se pode alcançar um tal grau de insensibilidade à tragédia humana, ao ponto de ela desaparecer por completo do discurso?

Vendo bem as coisas, a resposta a esta pergunta é talvez a resposta à questão que me pus anteriormente em relação à faculdade de julgar. Boaventura de Sousa Santos provavelmente não a tem. Esse particular talento humano falta-lhe. O seu pensamento teológico da política, a doutrina da causa única dotada de uma absoluta actividade, veda-lhe o acesso à compreensão das coisas políticas humanas. Não seria tempo de se dedicar a outros problemas que não ultrapassassem em tão desmesurado grau as suas faculdades? A academia fornece muitas oportunidades.