Quando é que um chapadão é a resposta certa a uma piada? Nunca. Por uma razão óbvia: uma piada, boa ou má ou assim-assim, não tem dedos que fiquem marcados na cara. Será sempre, sublinho, sempre, uma resposta desproporcional. E por isso desadequada. Claro, o argumento dos dedos marcados no coração e na alma dos mais sensíveis, é justificação que não colhe. O coração e a alma não vão parar ao hospital nem à morgue. Este é um acto civilizacional. In extremis, e infelizmente vimo-lo, uma chapada transforma-se num ataque armado quando a piada «vai longe demais» como no caso infeliz do massacre do Charlie Hebdo.

Faz parte dos nossos valores, o valor da Liberdade. Assim mesmo, maiúsculo. Quando digo nossos quero dizer da cultura ocidental. Sou católica. Não me passou pela cabeça dar uma estalada ou matar alguém quando António desenhou um preservativo no nariz de João Paulo II num belíssimo cartoon. É polémico? Sim, mas não se pode deixar de rir. O mesmo, sabemos todos, não aconteceu com a recepção ao cartoon de Maomé. Os limites da ocidentalidade são culturais, não são étnicos nem religiosos nem sociais. O esforço de séculos de civilização não se pode submeter a dores de alma. Há leis que definem a fronteira entre humor e difamação e mecanismos legais, mais ou menos eficazes, para responder às zonas cinzentas.

Uma piada, e a resposta a uma piada, falam sobre a forma como nos posicionamos sobre algo num dado momento. E rimos do nosso próprio ridículo quando a piada é boa. E do ridículo dos outros, onde não nos conseguimos rever, quando o humor é narcisista, o do humorista e o nosso – também acontece.

Ontem, durante a cerimónia de entrega dos Oscars da Academia, uma cerimónia cuja decadência foi coroada por um estalo que se viu e ouviu no mundo inteiro, Will Smith entrou numa espiral de erros que vão para além do entretenimento. São erros políticos, são erros culturais.

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Chris Rock, com quem a família Smith tem conhecidas divergências de opinião por ter, lá está, feito piadas com o boicote de Jada Pinket Smith aos Oscars de 2016, fez mais uma piada. Desta vez, sobre a alopecia de Jada Pinkett Smith, «pronta para fazer GI Jane 2» – Demi Moore, a actriz de GI Jane, filme de 1997, rapou o cabelo para a fazer a personagem. Will Smith levantou-se, subiu ao placo, deu-lhe um valente estalo, praguejou, voltou a sentar-se. Posteriormente, e tendo tido a oportunidade de ouro de se retratar ao receber o Oscar de melhor actor, «o recipiente do amor», como se definiu, vitimizou-se.

Teria sido mau se Jada Pinkett Smith se tivesse levantado e dado um estalo a Chris Rock. Mas foi muito pior: o seu marido sentiu-se no direito de agir como braço e mão, não solicitados, da mulher. Porquê? E a isto chamou defender a família. Como? Lembro que Jada Pinkett Smith, no seu negócio familiar para além dos palcos, o reality show, Red Table Talk, tem assumido posições controversas e sem necessidade de defesa.

Nada do que se passou é entretenimento. Dizer que Will Smith se excedeu é um vergonhoso eufemismo. Foi um gesto de poder e impunidade. Uma tentativa prepotente de definir os limites do humor. Da Liberdade. E a coberto da sensibilidade ofendida da suamulher. Will Smith ficou numa posição muito menos parecida com a King Richard do que com Richard III: depois da coroa, a queda.

A autora escreve segundo a antiga ortografia